domingo, 3 de maio de 2009

Mulan - Análise do Conceito de Feminilidade

Baseado num poema tradicional Chinês que data do séc VI, d.C, Mulan é um filme de animação realizado em 1998 pelos estúdios Disney, cuja narrativa, no entanto, se pauta por divergir, à partida, das suas demais produções. Contrariamente ao desfile de princesas secundarizadas (submissas, em não raros casos) que constituíam o role de personagens femininas nas longas-metragens deste estúdio até então – à excepção, algo analogamente, de Pocahontas, de 1995 –, Mulan representa uma renovada alternativa a este padrão: trata-se de um filme centrado numa protagonista feminina que, não só assume a possibilidade de diferença/mudança numa sociedade altamente patriarcal – demonstrando um comportamento/vontade evidentemente dissonantes dos estereótipos/papéis associados à mulher da China de então –, mas também consegue fazer valer o seu valor individual de modo a ombrear em termos de força, e superar em termos de inteligência, todos os homens do exército chinês e, nessa medida, salvar a China, não pela espada, mas pela astúcia e intelecto.

Com efeito, baseando-se no referido poema – intitulado “A Balada de Mulan” –, que narra, em verso, a história de uma guerreira cujos feitos bélicos remontam ao séc. IV/V, a forma de abordagem – à partida, acentuadamente femininista – desta personagem mítica, neste filme, reflecte o carácter excepcional da figura que lhe dá origem: quer ao nível individual – uma vez que Mulan é o centro da narrativa e, em concordância com o estatuto de heroína, toma as decisões mais arrojadas e radicais para derrotar os seus inimigos, enquanto Shang (o protagonista masculino e interesse amoroso de Mulan) assume um papel secundário, principalmente quando as decisões não se reflectem directamente no plano militar –, quer no plano relacional – uma vez que, como anteriormente sugerido, Mulan não se define como uma princesa, frágil, insegura e cujo projecto de vida se limita à espera de um príncipe-salvador (geralmente o herói, protagonista da narrativa), antes se demonstrando uma personagem com motivações próprias e que, em conformidade, toma a iniciativa na relação com o tímido Shang.

Nessa medida, e sob a óptica de uma contextualização cultural, o filme explora amplamente os estereótipos geralmente associados à figura feminina, particularmente no âmbito do seu papel na sociedade – explorando-se com particular ênfase a questão de como o homem, enquanto a figura dominante daquela sociedade, via a mulher e a forma como estas se faziam corresponder aos papéis que eram (são?) de si esperados. No entanto, não obstante dessa premissa de actualização crítica, a eficácia – ou mesmo a intenção – de subverter esses estereótipos é discutível, já que o filme, embora estabeleça sempre uma comparação antagónica entre a apresentação desses estereótipos e uma protagonista que luta por “sobreviver” aos mesmos, segundo um comportamento claramente dissonante ao pensamento machista imperante então – ainda verificado, mesmo que de forma progressivamente mais residual, hoje –, acaba (quase) por configurar apenas uma parada/sucessão acrítica dessa mesma tipificação.

Nessa medida, se, por um lado, a subversão desses estereótipos se dá mais eficazmente com a referida contraposição da protagonista enquanto alternativa a um modelo patriarcal, por outro lado, porém, assumindo que é crítica a intenção de imbuir certos momentos - em que a abordagem desses temas de representação da mulher são centrais e em que a desvirtuação dos mesmos seria a mensagem desejável – de um tom cómico, a eficácia desta segunda estratégia é ambígua. Por conseguinte, esta ambiguidade deriva do facto de ser discutível a verificação do propósito de desencadear no público a consciencialização do absurdo destes estereótipos através de uma abordagem cómica a eventos narrativos que se pretendem vistos criticamente – ainda mais se enfatizando a ineficácia se assumirmos como público primordial da obra uma faixa etária infantil –, ou se, por outro lado, este método se configura como um modo de desresponsabilização da relevância e perigosidade dos mesmos, deixando espaço a um público que se vê passível de concordar com esses estereótipos – revestidos de inofensividade e/ou de irrelevância actual.

Com efeito, muitos são os temas que, em Mulan, reflectem o que, em vários outros filmes, séries ou livros, são estereótipos tratados, no entanto, com muito menor (ainda menor) consciência social – perigosos porque, à semelhança do que foi defendido no anterior texto, inquestionados.

Traduzindo em exemplos/temáticas:

a) Subordinação patriarcal/centralidade na figura masculina - O filme aborda esta tendência ao descrever um tempo em que era esperado que o homem resolvesse todas as crises e materializasse todas as vitórias, morais ou militares – sendo que, nessa medida, o paradigma do comportamento masculino se configurava, assim, pela confluência destas duas dimensões: o homem enquanto objecto de respeito indiscutível, estatuto a que era associada, no entanto, a responsabilidade de defender militarmente a aldeia. Nesse sentido, a música “I’ll make a man out of you” descreve amplamente o paradigma do homem da altura – forte, viril, capaz de suportar todas as adversidades -, em contraposição com a fraqueza geralmente associada às mulheres – expressa na frase que Shang, perante um exército de homens incapazes, se interrogava “did they send me daughters, when I asked for sons”.


No entanto, esta contraposição, em Mulan, perde expressividade ao narrar o percurso de uma personagem feminina que, mascarando-se de soldado, subverte as regras da sociedade patriarcal à qual é esperado que se subordine, e que, mesmo tendo sido alienada pelos companheiros soldados quando descoberto o seu disfarce – inerentemente, o seu género –, salva a China sem precisar de exércitos ou força física, desenvencilhando-se num mundo de homens e vencendo. Porém, sendo verdade que o filme subverte este estereótipo ao apresentar uma protagonista capaz e com personalidade auto-suficiente, com poder de iniciativa e sem ter clara e necessariamente como motivação a atenção da personagem masculina – já de si uma boa alternativa à ideia da personagem feminina formulada exclusivamente com o propósito de servir de interesse amoroso o protagonista (não só apanágio, como anteriormente referido, do universo Disney, mas igualmente própria dos filmes de acção, em que, depois do herói salvar o mundo, a princesa/ou a companheira de batalha, secundarizada, é o prémio da sua heroicidade) –, esta desvirtuação de estereótipos é anulada num desenlace narrativo em que Mulan, de alguma forma, reflecte a tendência imperante na utopia fílmica: o poder de iniciativa/ambição em personagens femininas é quase sempre ou alvo de descrédito ou sempre motivada por factores externos, geralmente associados à família – o altruísmo como característica essencialmente feminina não é, à partida, uma má representação, não fosse o facto de se imbuir de uma aura de tipo/modelo, de verificação impreterível – ou, por outras palavras, de estereótipo – ou validação masculina – motivadora dessa ambição/iniciativa de personagens femininas cujos sucessos tomam um plano acessório. Com efeito, as duas últimas representações estão presentes neste filme: Mulan não entra no exército por uma questão de afirmação pessoal e demonstração de auto-confiança, mas para impedir o pai de correr risco de vida; no final, quando confrontada com a hipótese de seguir a carreira militar (uma carreira exclusivamente masculina, naqueles tempos), ela escolhe activamente renunciar ao convite, e dedicar-se à família (apaziguando, no processo, o ego do superior da hierarquia militar Shang, entretanto deixado em ruínas aquando da revelação de que fora superado em força e em inteligência, não por um companheiro soldado, mas por uma mulher travestida).

Sendo, no entanto, evidente que se tratam de valores passíveis de serem percebidos positivamente – a mulher como um ser mais dedicado e altruísta não parecem, à partida, representações negativas –, esta verificação é, ainda, enfatizada pelo facto de que Mulan consegue sê-lo num contexto dissonante ao cânon, conseguindo integrar os valores humanistas (e racionais) num ambiente militar – o que é, por si só, uma representação feminina pouco ecoada, à excepção de exemplos mais recentes como as séries Alias, Sarah Connor Chronicles, ou os (menos recentes) filmes da saga Alien. Porém, definirem-se estas características como modelos de verificação necessária são o que torna esta associação como algo de questionável, por se configurarem em estereótipos que fazem corresponder à figura feminina uma maior propensão para a família, por sua vez percebida como uma necessidade reveladora de carência afectiva e, por isso, de vulnerabilidade – sendo esta uma correspondência que atribui um carácter de exclusividade destes sentimentos à mulher (embora, actualmente, o seja cada vez menos).

b) Mulher como objecto sexual/conceito de beleza – sendo este, talvez, o estereótipo mais comum, é, igualmente, aquele que é mais bem subvertido pela personagem de Mulan – porque esta salva a China por valor próprio, sem que consiga nenhum dos objectivos pela sua sexualidade, ou mesmo represente a versão intelectualmente submissa tão frequentemente explorada por filmes da mesma natureza (sob a forma das, já referidas, princesas da Disney que, não só se definem pela ânsia da chegada do príncipe, como também, geralmente, são alvos da malvadez de outras personagens femininas, mais uma vez perpetuando a ideia da competitividade feminina, geralmente materializada nas mulheres que são bruxas, velhas e sozinhas, que, por inveja, incorrem em comportamentos que as empurram para alienação da sociedade dominante). Nessa medida, ignorando-se o referido desenlace da personagem, já antes analisado, Mulan é declaradamente dissonante, à partida, em relação ao modelo de comportamento feminino que é descrito ao longo do filme, amplamente descrito no momento em que os soldados enumeram as características da mulher ideal, entoando a música (e a definição de) “a girl worth fighting for”. Descrevem-se, nessa medida, as capacidades associadas à manutenção da casa - havendo uma personagem que se expressa como alguém que “couldn’t care less what she’ll wear or what she looks like, it all depends on what she cooks” –, ou em conformidade com a ideia de centralidade masculina –“I want a girl who’ll marvel at my strengh, adore my battle scars” –, ou à vertente visual – evidenciadas por duas personagens que defendem “I want her paler than the moon; with eyes that shine like stars” – enquanto modelos reveladores do imaginário da mulher ideal.

Nesta medida, apesar de representar as personagens masculinas sob uma óptica incomum – negarem, de alguma forma, a ideia de que só a mulher é que tem esta necessidade familiar, ao apresentarem soldados que confessam a vontade de constituir uma família, e também de o fazer numa base de validação feminina -, não deixa de ser sintomático e representativo da subordinação feminina como comportamento modelo/padrão o momento em que, em resposta a Mulan, que pergunta “How about a girl who’s got a brain, and always speaks her mind?”, todos eles negam a preponderância da sua asserção. Desta forma, assumindo como verdadeiro que esta animação explora estes estereótipos numa intenção de desvendar o seu carácter absurdo – sendo discutível se o consegue eficazmente –, são inúmeros os outros filmes que o fazem agindo em conformidade e desencadeando, por isso, a validação destes mesmos estereótipos. Nessa medida, o paradigma da mulher dos filmes, da televisão – e, em tantos outros exemplos, da animação -, é, não raras vezes, aquela que é (inacreditavelmente) magra, que se relaciona com o sexo oposto segundo um de dois pólos: ou por submissão - perpetuando a ideia da personagem feminina validada enquanto objecto da afeição/protecção do protagonista masculino –, ou por sedução – não sendo raros os estímulos fílmicos em que a mulher define a sua participação exclusivamente enquanto objecto sexual, sobre-sexualizado (de que são apanágios óbvios os já mencionados, no anterior trabalho, teen movies, ou os filmes de acção claramente orientados para uma plateia maioritariamente masculina). Segundo estes modelos, às mulheres, vistas como inferiores, é-lhes incumbida a necessidade de compensar a sua inferioridade com outros atributos – problema este que se desenvolve, nos dias de hoje, na sobre-consciencialização corporal à qual a mente das novas raparigas se torna exponencialmente mais permeável – associada, evidentemente, à obrigatoriedade de beleza e magreza incutida pelos media actuais (sendo um modelo que é perpetuado algo ciclicamente uma vez que as actrizes de cinema e de televisão emergem simultaneamente como causas e efeitos desse mesmo ciclo em virtude da selecção de que são alvo para corresponder a requisitos de imagem e/ou idade).

c) Papel familiar - Assente numa mesma ideia de inferioridade feminina, o estereótipo que incute a associação da mulher à família faz-se corresponder como um comum significante de vulnerabilidade, porque revelador de uma necessidade afectiva impreterível e definitiva, representada como exclusiva ao sexo feminino – não obstante de, como já foi amplamente referido, a ligação à família não ser uma característica, em si mesma, negativa e do facto desta tendência de exclusividade ter vindo a ser atenuada com produções mais recentes. Com efeito, o primeiro só se torna um problema quando serve o propósito de perpetuar o estereótipo de que a vida familiar não é parte do quotidiano da mulher (da pessoa), mas antes o todo que define a existência da mulher (enquanto género), por isso, unidimensional. Em Mulan, apesar de evidenciada noutros momentos do filme, esta tendência torna-se particularmente evidente quando a protagonista é levada à casamenteira ao som de uma canção entoada pelas mulheres da aldeia, em que são enumerados os deveres associados à mulher no sentido de cumprir o seu dever social de criar uma família - o único projecto de vida possível –, revendo os tipos assentes numa perspectiva simplista da figura feminina enquanto elemento que só valida a sua existência social pelo casamento e, nessa condição, pela presença de um homem na sua vida – perspectiva ofensiva porque acentuadamente patriarcal e porque implica a necessidade da mulher corresponder a um determinado conjunto de atributos que configuram a expectativa da sociedade em relação à mesma.

Se, já antes referida, na música “A Girl Worth Fighting For”, esses atributos são amplamente descritos, a música “Honor to us all” – que quase serve de introdução ao filme –, explora-os segundo um significado muito particular, sugerindo a existência de um sentido de “orgulho” a ser absorvido pelas figuras femininas pelo acto de agir de acordo com esse modelo, assente na ideia de que a única forma de uma mulher trazer a honra à família é a conformidade. Nessa medida, nesta música, é descrito esse modelo: mais uma vez enfatizando as ideias da delicadeza (“each a perfect porcellain doll”) e da beleza, canalizadas para obter a atenção masculina (“men want girls, with good taste, calm, obedient who work fast-paced; with good breeding and a tiny waste”). Nesta medida, a ambiguidade da abordagem impera ao configurar-se esta enumeração pondo na boca de outras personagens femininas palavras marcadamente machistas – relegando, assim, as responsabilidades da perpetuação deste estereótipo às mulheres que vivem em conformidade com os mesmos (a clara maioria, de que apenas Mulan se dissocia), isto é, transmitindo a ideia de que são estas mulheres, indubitáveis produtos do facto de viverem numa sociedade patriarcal, os principais agentes promotores desse modo de vida reduzido e redutor. A individualidade da mulher – que assume e perpetua a norma, independentemente de o fazer ou por iniciativa ou reacção – é preterida em favor de uma única dimensão e medida de valor – “A girl can bring her family great honour in one way: by striking a good match” –, não obstante do facto de que se atribui, de alguma forma, o mesmo carácter unidimensional ao homem da mesma sociedade – “we all must serve our Emperor who guards us from the Huns, a man by bearing arms, a girl by bearing sons”.

Com efeito, sendo inegável o carácter subversivo de Mulan, em virtude da sua ideologia, abordagem e da sua protagonista incomuns – Mulan é uma rapariga forte, determinada, com personalidade e iniciativa, capaz de desenvolver projectos com sucesso e inteligência – também o é que, no entanto, falha em configurar-se como um filme verdadeiramente inovador pelo carácter tão evidentemente excepcional da história e da personagem – além de ser a única mulher da aldeia, em nenhum momento da história esta serve como modelo para outras mulheres ou raparigas, antes deixando-se, no final do filme, permeabilizar pela tendência dominante, correspondendo exactamente àquilo que, no início do filme, se adivinhava tão relutante em assumir; por isso, prefere renunciar à hipótese de lograr do seu sucesso e das suas capacidades, em termos pessoais e laborais, no sentido de regressar à família e construir o seu projecto de vida familiar. Nesta medida, em Mulan, independentemente de se centrar numa protagonista com claros valores feministas, prevalecem os valores tradicionais pela ausência de verdadeiros valores transformadores: tanto no que se refere à sociedade em que se integra a protagonista (nada na aldeia de Mulan muda verdadeiramente depois de sabido o seu percurso exemplar); como no que se refere à própria protagonista (que acaba o filme a corresponder exactamente ao cânone, alterando o seu percurso nesse sentido, (quase) transmitindo a ideia de que o que a Mulan conseguiu, não o fez por si mesma, mas para alcançar a validação da sociedade – expressa na música Reflection). O que, à partida, se adivinhava como um filme centrado na luta de uma personagem feminina pela sua individualidade – em virtude do determinismo da sociedade, com as suas expectativas e os seus modelos –, acaba por se traduzir numa história de cedência e privação em concordância com uma necessidade inelutável de integração.


O facto de que a história de Mulan se passa no continente Asiático - cultural e geograficamente afastado do paradigma do mundo ocidental -, há quase duas dezenas de séculos atrás, pode, ainda, gerar interpretações ainda mais debilitantes à eficácia das potenciais mensagens deste filme, ao poder afirmar-se uma hipotética desresponsabilização da sociedade ocidental relativamente a problemas/representações que, sendo, neste filme, associadas ao continente asiático, são, no entanto, universalmente verificadas e com consequências igualmente nefastas – isto é, não efectivando, à partida, juízos de intencionalidade dos autores do filme (porque nenhum dado concreto pode ser apresentado para validar essa assunção), a contextualização geográfico-temporal da narrativa pode incitar a possíveis interpretações e apreensão de mensagens subtextuais no sentido de deslocalizar um problema tão contemporâneo como é o da tipificação de papéis de género, secundarizando-o como um problema (exclusivamente) de um passado longínquo, da China do séc. IV/V. Nesta medida, abordam-se as contingências de uma realidade que, em Mulan, é apresentada de forma intrinsecamente relacionada com um determinado contexto e um tempo específico, propiciando, nesta medida, o relegar-se do problema da desigualdade entre géneros a uma questão exclusivamente cultural – descentralizando uma tendência que é mundial, ao focá-la na história de um país/continente específico, atenuando a gravidade da questão porque não a assume como um problema tão verdadeiro na Ásia como em qualquer outra das áreas geográficas.

Com efeito, aliando estes factores aos já referidos relativamente à hiperbolização dos estereótipos numa perspectiva dubiamente crítica, se no anterior trabalho se afirmava (e aqui se relembra) a ausência de questionamento em torno dos estereótipos como principal catalisador da sua perpetuação, evidencia-se e amplifica-se este problema pelo facto de que este filme em análise se categoriza enquanto filme de animação - que, nessa condição, orientando-se essencialmente para um público constituído, maioritariamente, por crianças e jovens, se imbui de um carácter de barómetro de comportamentos a pessoas, porque em fase de formação de personalidade e construção de redes de valores, mais facilmente impressionáveis, influenciáveis e moldáveis. Nesta medida, assumindo como verdadeira a asserção de que, enquanto filme de animação, corresponde às características de um género (fílmico) cujas mensagens são alvo de ampliação para salvaguardar a clareza do seu conteúdo e/ou por motivos exclusivamente motivados pela necessidade de comicidade, pode perceber-se a ausência de relativismos em Mulan – todos os papéis sociais, neste filme, são categóricos e, na sua maioria, estanques – como uma opção específica do meio, não necessariamente vinculada a potenciais conteúdo de hipotéticas mensagens - o que, de alguma forma, pode relegar possíveis críticas de que a confrontação tão antitética entre homem e mulher seja vista como algo de intencionalmente negativo, porque conformista, enquanto circunstâncias da animação (como género) e do público a que se destina.

Nessa medida, ainda que Mulan não seja indubitavelmente inconformista, não pode, no entanto, negar-se que, para além de representar uma renovadora alternativa ao paradigma da personagem feminina Disney, levanta algumas questões extrapoláveis para os dias de hoje: ao constituir a história em torno de uma mulher que prova o seu valor num mundo patriarcal, alcançando o seu respeito vestida como um homem, serve o propósito de não dar espaço para redução das provas que completou; isto é, num contexto em que qualquer mulher que ousava falar como igual para um homem era admoestada no sentido de medir bem as suas palavras e falar com reverência, Mulan só poderia provar o seu valor arranjando uma forma de fazer com que o género não fosse um critério de desvalorização individual. Nessa medida, analogias podem ser estabelecidas relativamente ao que presenciamos, nos nossos dias, relativamente às mutações da participação feminina nos inúmeros âmbitos da vida social: não só quando se verifica a necessidade das mulheres, em contextos laborais, fazerem-se aproximar, pela roupa, ao paradigma masculino (enquanto aspecto de credibilidade – assim como o fez Mulan), mas também, por exemplo, quando se discute a controvérsia gerada pela lei da paridade na assembleia, em que é assegurada a determinação de cotas mínimas de participação feminina neste órgão legislativo, afirmando-se, neste contexto de discussão, essa necessidade como um mote para a desvalorização individual e colectiva (sendo comum pensar-se a presença das mulheres na assembleia não se motiva pelo seu valor pessoal, mas por uma inferioridade tão inerente, que precisa de ser salvaguardada, não por critérios de qualificação, mas por regras).

Estes e outros casos de descriminação imanente – processo em curso de atenuação a passos demasiado reduzidos – deixam antever uma questão de verificação e perpetuação universais, porque relegada, constante e sucessivamente, nos dias de hoje, independentemente do contexto geográfico, ao estatuto de falsa realidade e um falso problema: a mulher, enquanto indivíduo, está longe de ser tomada a sério, e as tentativas de real paridade são revestidas das mesmas características, extrapolando-se a noção de excepção da animação em análise - com uma Mulan que é única, numa sociedade de mulheres perfeitamente dispostas a agirem de acordo com a tradição e o cânone –, dos demais filmes e das séries de TV (onde as protagonistas femininas são francamente inferiores às masculinas em termos de número e de receitas que desencadeiam, salvaguardando-se raros mas felizes exemplos – de que Kill Bill é um modelo expressivo) para a vida real – em que a excepção de um indivíduo que consegue ser bem sucedido num contexto dominante cumpre o adágio popular ao configurar-se como uma triste confirmação de uma regra que nega a igualdade de circunstâncias de todos, para todos.

Francisco Rodrigues
Henrique Sousa
Júlia Gradim
Renata Ramos
Tiago Cruz

UCP.SI

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