Escrito em 1997, por Annie Proulx, Brokeback Mountain é um conto tornado conhecido pelo cinema quase uma década após a sua data de publicação, numa longa-metragem, realizada em 2005 pelo reconhecido realizador Ang Lee e interpretado por um elenco de quatro actores que desfrutam de igual popularidade no panorama do cinema internacional. Em virtude da visibilidade da produção potenciada por todos estes factores, a tradução fílmica do livro trouxe para o âmbito do debate público um tema de que o livro partilha mas não conseguiu impor: a homossexualidade apresentada enquanto relação entre pessoas do mesmo género (re)vista sob uma óptica normal e normalizada. Na mesma medida que o livro a causou – numa escala evidentemente divergente –, o lançamento do filme foi alvo de grande controvérsia, em virtude do seu conteúdo – a normalização da homossexualidade, pela potenciação dos aspectos que a aproximam à heterossexualidade, sem que haja redução ou desvirtuação da sua problemática –, mas, igualmente, pela forma – em virtude do facto de que explora, através das suas personagens (instrumentos fulcrais dessa normalização) uma das mais recorrentes figuras-tipo do imaginário americano enquanto paradigmas da masculinidade: os cowboys, do cinema, da BD e dos anúncios da malboro, projectos de futuro de qualquer rapaz que crescia (cresce) bombardeado por estas parâmetros de como (querer) ser e agir. Estas representações – nunca exclusivas do público americano, antes difundidas e embutidas no imaginário de todo o mundo – são amplamente utilizadas por Annie Proulx no momento de criação da história de Brokeback Mountain, recorrendo a estes (e outros) estereótipos numa perspectiva subversiva, fazendo expandir o espectro de discussão para abarcar igualmente as questões de género – sendo um dos aspectos de mais interessante análise a forma como a autora desvirtua a imagem do homem homossexual com características femininas, recorrendo, explorando e reiterando estereótipos de masculinidade (recorrentes, nessa condição de estereótipos, em inúmeras personagens masculinas de produções artísticas de diversos domínios em que, em todas estas, a questão da orientação sexual toma um papel secundário). Com efeito, igualmente na sua condição de estereótipos, a sua integração na cultura dominante – social e artística, porque a segunda replica a primeira – é imanente, gradual e inquestionada, e, nessa medida, introduzem-se na mesma como meias-verdades que, no caso de Brokeback Mountain, só foram postas em causa porque exploradas numa óptica divergente à comummente aceite: sendo verdade que, em inúmeros exemplos de filmografia e literatura mundial, se transmitem correspondências entre profissões tipicamente masculinas e outras tipicamente femininas (perpetuando, nessa medida, o estereótipo de que homens e mulheres têm papeis essencialmente divergentes na sociedade), tornando-se, assim, evidente que a controvérsia que a profissão dos cowboys de BBM gerou se relaciona exclusivamente com a corrupção do conceito de masculinidade que representa – porque, segundo o pensamento social dominante, um homem pode (deve) ser cowboy, mas não pode (ou deve) amar outro homem –, então revela-se um novo problema, relacionado com o não questionamento que a instauração de estereótipos de género implica. Nesta medida, sendo verdadeiro, como anteriormente referido, que o objectivo do conto (e do filme) se relaciona com a desmistificação da homossexualidade pela sua universalização, e nessa medida, fá-lo ao incutir nos seus leitores (o público) o questionamento acerca dos pré-conceitos que são normalmente associados à condição do homem másculo como aquele que é indubitavelmente heterossexual, a enfatização do facto de que os estereótipos de masculinidade só não são aceites porque associados a uma orientação sexual divergente, então denota-se o facto de que são comummente assumidos aqueles pré-conceitos – os estereótipos – como os modelos de normalidade, de padrão.
Nesta medida, embora o conto/filme BBM o transmita com um objectivo totalmente distinto – anteriormente abordado e não sendo o objecto desta análise –, é notória a exploração de diversos outros estereótipos de masculinidade (mais ou menos ofensivos), nomeadamente:
a) a rudeza – sendo particularmente evidente em momentos do livro - suprimidas no filme – em que Annie Proulx descreve comportamentos de higiene de Ennis, negando, por um lado, o naturalismo geralmente associado a uma história de amor – uma emoção geralmente representado de forma imaculada neste tipo de narrativas –, ou o repúdio pela sujidade (ou preocupação excessiva com o físico) geralmente associado à imagem do homem homossexual feminino;
b) a agressividade - particularmente evidente na personagem de Ennis del Mar que representa uma característica geralmente associada ao sexo masculino no que se refere à dificuldade de gestão – e, principalmente, verbalização – dos de sentimentos. Ennis é, nessa medida, uma personagem que fala pouco para o tanto que sente, e a violência trata-se, por isso, de uma resposta recorrente a quaisquer acontecimentos com os quais não consegue/sabe lidar, traduzido, no conto/filme: numa perspectiva de demonstração de afectividade – o companheirismo entre Jack e Ennis, numa fase inicial, de clara evolução do seu relacionamento, é demonstrado por agressões provocatórias (vistas como um divertimento) –; ou sob a óptica de confrontação (quase) territorial – incorrendo em acções violentas só para demonstrar que, de alguma forma, as pode efectivar, como, por exemplo, quando canaliza a sua revolta/frustração numa rixa de rua, injustificada, depois de ter discutido com a esposa. Nesta perspectiva, confirma-se, neste conto, a ideia do macho-alfa, que sente a demonstração de sentimentos como algo que, de alguma forma, o reduz quando em relação com outros indivíduos (particularmente, do sexo masculino), sem que, no entanto, possa restringir o facto de sentir intensamente, mas antes traduzindo esses sentimentos fisicamente – também presentes, em Ennis, no momento em que, afastado pela primeira vez de Jack, vomita numa esquina, escondido, gritando para um rapaz que passa e que o vê naquela condição; no conto, só mais tarde partilha com Jack a sua reacção ao seu afastamento, num raro momento de confidência por parte do primeiro.
c) a sobre-sexualização – sendo, no entanto, um dos aspectos de mais discutível verificação neste conto/filme (uma vez que, principalmente o segundo, conforme já explanado, é bem sucedido na romantização normalizante da relação de Ennis e Jack), trata-se de uma representação comum nas demais produções fílmicas do cinema comercial americano e dos média em geral – particularmente no que se refere às tão perigosamente (re)vistas teen comedies como American Pie ou Not Another Teen Movie, em que rapazes e raparigas são representados, respectivamente, como viciados em sexo e como objectos sexuais. No entanto, com graus de divergente ostentação desta vertente excessivamente sexual, estes dois papéis, associados a homens e a mulheres, são representações comuns perpetuadas pelos referidos meios de comunicação, assumindo-se como uma divergência de género a importância que homems atribuem ao âmbito físico das relações entre pares sexualmente activos. Neste conto/filme, com efeito, será discutível a verificação deste estereótipo – tão simplista do que é a relação entre pessoas, homens ou mulheres –, embora haja elementos que indicam para a sua representação: o início da relação sexual de Ennis e Jack é apresentado como um impulso incontrolável, (quase) como uma necessidade de quebrar o período de abstinência (potenciada pela natureza da profissão, que requeria o seu afastamento das famílias durante longos períodos de tempo), que só mais tarde é desenvolvido, nas obras, sob a óptica de romance que se estende da vertente física para a afectiva. Esta vertente é, ainda, enfatizada, pela forma como o próprio Ennis verbaliza a sua incompreensão face àquilo que sente relativamente à sua relação física com Jack: Ennis é o único dos dois homens que nunca assume/verbaliza (para si ou para os outros) sentir atracção por outros homens, antes descrevendo a sua relação com Jack como um caso único e fora do que é, para si, normal – assunção esta que se relaciona, maioritariamente, com questões culturais específicas da personagem (em virtude da sua educação e o seu contexto, a homossexualidade não é vista por Ennis como algo de natural), mas pode imbuir o facto de que a personagem é pela primeira vez confrontada com a sua atracção por um homem (e não homens) de um novo significado, por se tratar da primeira vez em que é confrontado com um longo período de abstinência, já que o Verão em que conheceu Jack, marcou também o seu primeiro trabalho como pastor. Como anteriormente referido, a necessidade de uma relação física entre Ennis e Jack, embora seja desenvolvida, ao longo da história, enquanto uma dependência de cariz essencialmente afectivo, mantém-se sempre no decorrer da mesma: Ennis mantém uma relação física que, ainda que esporádica, revela essa necessidade, enquanto que Jack a evidencia de forma mais frequente, recorrendo, por isso, à prostituição de modo a corresponder às carências de uma relação física homossexual.
d) Desresponsabilização e desprezo pela figura feminina enquanto elementos que justificam o adultério – sendo verdadeira a assunção de que, culturalmente, adultério era um tipo de comportamento geralmente associado ao homem típico de um passado (mais ou menos) recente, também o é que continua, embora num grau muito menos acentuado, em pleno século XXI, a ser mais esperado (e menos condenado) que um homem apresente comportamentos infiéis do que uma mulher nas mesmas condições (sendo que à segunda se associa igualmente muito mais a capacidade de perdoar). Nesta medida, são muitos os estímulos mediáticos, sociais ou artísticos, que perpetuam permissivamente esta perspectiva condescendente do homem enquanto um ser incapaz de ser relacionalmente responsável – e da mulher como um ser, por contraposição, passivo, ou desviante quando incorre nos mesmos comportamentos comummente desculpados enquanto conduta masculina –, sem se denotar a intenção de quebrar com um estereótipo cujo fundo de verdade se extinguiu, em perspectivas tão categóricas, há décadas atrás. Ennis é, no entanto, um homem deste passado: um pai de família e o típico homem da casa, incapaz de assumir responsavelmente a sua relação com outra pessoa (que, apesar de assente em pressupostos verdadeiros, de um sentimento que o é igualmente, não lhe destitui do seu carácter adúltero) e, em conformidade, de abandonar a mulher e as filhas – em virtude, igualmente, das repercussões desse acto, mas essencialmente por ter um sentimento de dever e de necessidade de correspondência ao que a sociedade espera de si –, ou mesmo quebrar com o seu comportamento de infidelidade. Alma é, com efeito, representada igualmente como um ser passivo, que, no único momento em que nega esta tendência, é fisicamente admoestada pelo marido – configurando-se como mais um exemplo da reacção-padrão de Ennis quando confrontado com algum estímulo que sente como ameaçador aos mais diversos níveis (conforme explicado anteriormente).
Relativamente ao último ponto, concernente à relação familiar, Ennis e Jack evidenciam duas perspectivas de uma mesma vivência de forma claramente exemplificativa do que tem vindo a ser abordado neste trabalho (mesmo em pontos não directamente relacionados), enquanto representações culturais – motivadas, na mesma medida e algo ciclicamente, igualmente pela cultura e o contexto sociais –, imiscuídas no domínio do subtexto e, nessa medida, porque não questionadas, se foram mantendo como verdadeiras ao longo dos tempos: em Jack, denota-se a verificação da confrontação territorial, a ideia da família enquanto objecto do ritual masculino da afirmação de uma identidade dominante – presente na discussão entre este e o pai de Lureen (esposa de Jack), à mesa, em que Jack impõe a sua preponderância do seu papel decisório na educação das filhas –; em Ennis, denota-se a clara dificuldade em lidar com o seu papel na família (enquanto referente à sociedade que a integra), porque inseguro de ser capaz de corresponder ao que essa tarefa lhe exige - insegurança que motiva a agressividade da personagem e a procura de manter uma situação familiar instável a todo o custo (por pressão auto-imposta, bem como enquanto resposta disfuncionalmente conformista a um pressuposto social), preterindo a verdade em relação à simples hipótese de negar essa conformidade social (e, nessa medida, agir como indivíduo racionalmente autónomo). Com efeito, sendo verdadeiro que, por um lado, Brokeback Mountain corresponde a um objectivo – o de subverter a relação do leitor/espectador com os estereótipos associados à homossexualidade a partir do seu questionamento a partir de motivos acentuadamente masculinos (e sobre-masculinizados) – e a um tempo específicos – em que a preponderância dos estereótipos desencadeava a constante categorização de papéis, e a formulação, por consequência, de verdadeiras personagens-tipo –, por outro lado, a perpetuação destes pressupostos por parte das inúmeras obras (principalmente fílmicas) da contemporaneidade, não integra, na maioria dos exemplos, semelhantes justificações e intentos.
Pelo contrário, existem, no entanto, obras bem sucedidas no que se refere à exploração de estereótipos que, por contraste, ajudam a subverter a assunção de unidimensionalidade que este tipo de perigosa categorização pode desencadear. Nesta medida, filmes como “Cinderella Man” – do mesmo ano, 2005, por Ron Howard – ou “The Wrestler” – 2008, de Darren Aronosfsky –, exploram representações tipicamente masculinas, ao mesmo tempo que as enquadram, essencialmente, como aspectos integrantes da sua personalidade, mas não únicos, na sua condição de meras parcelas; isto é, são características frontalmente assumidas, mas tornadas secundárias pela sua irrelevância face ao que aqueles homens são, enquanto pessoas, e não como passivos entes de um grupo que lhes determina formas de ser e de agir, individual e colectivamente. Com efeito, embora partilhem de uma premissa narrativa parcialmente semelhante, ambas as personagens assumem caminhos divergentes – materializando a pluralidade da condição de ser humano, invocada anteriormente.
Nesta medida, “Cinderella Man” e “The Wrestler” partilham apenas o facto de apresentarem duas personagens (respectivamente, J. Braddock e Randy), cuja profissão é tipicamente masculina – são profissionais de desportos de luta, respectivamente, Boxe e Luta livre –, e ambos se configuram (e estão rodeados de) signos de virilidade. J. Braddock (“Cinderella Man”) é, com efeito, um boxer americano que, após ter terminado a sua carreira, se vê obrigado a voltar a lutar quando ele e a família (a esposa e três filhos) são confrontados pela instabilidade económica da Grande Depressão dos anos 30. Randy é um profissional de Luta livre e um homem de família, que se deixa corromper pelas circunstâncias do seu meio profissional (a fama, as drogas, álcool e o adultério) , a ponto de, no momento em que a narrativa nos apresenta a personagem, este se encontrar sozinho a viver numa roulotte, alienado pela filha e esposa, sentindo-se reduzido enquanto wrestler (em final de carreira forçado pela sua saúde) e enquanto homem (que falhou em todas as decisões e dimensões do seu projecto de vida). As diferenças entre personagens/narrativas são, nesta medida, evidentes:
a) J. Braddock é um homem representativo da nobreza de carácter, do espírito de sacrifício e da confirmação de valores humanistas (algo dicotomicamente, tornando secundário o facto de ser um homem cuja profissão deriva da agressividade, pela contraposição com uma postura moderada e pacifista no seu quotidiano). Nesta medida, embora seja discutível a desejabilidade de exaltar o facto deste ter sacrificado o seu corpo e dignidade pela família como o aspecto mais representativo da sensibilidade de Braddock – por se incorrer no risco de recair sobre o estereótipo contrário, anteriormente referido, do homem enquanto elemento mais preponderante/dominante no contexto familiar –, trata-se, mais uma vez, de um aspecto de contextualização epocal, sendo inegável que, em virtude da própria condição da mulher na sociedade de então, o esperado seria que fosse o homem a responder/agir perante uma crise. Acresce ainda a este aspecto, o facto de que o filme explora, igualmente, estereótipos masculinos no sentido de ilustrar esse mesmo ambiente social, pela existência de personagens masculinas que servem de contraponto ao protagonista (personagens agressivas, imoderadas (até provocatórias) do ponto de vista sexual, individualistas, etc.). No entanto, J. Braddock apresenta-se como a alternativa a este ponto de vista simplista do sexo masculino – expressivamente sugerido no facto de ele ter decidido ir pedir dinheiro aos antigos colegas revela um altruismo que vai contra a noção de masculinidade que era considerada o paradigma do homem da época.
b) Em “The Wrestler”, a abordagem é claramente divergente e algo dicotómica, efectivando-se a exploração dos diversos estereótipos/características associadas à masculina no sentido em que estas tomam parte da especificidade da personagem, conseguindo, ao ponderar o seu carácter de fenómenos de índole individual, desproblematizar, desmistificando: 1) o carácter excessivamente dramático (e condenável) associados à ocorrência de determinados comportamentos tipicamente masculinos – uma vez que o facto de Randy ser um homem viril e forte, em nada diminui a sua condição de bom companheiro e profissional (assente na sua relação com os outros lutadores, em que não é evidenciado nenhum carácter de real agressividade/competição, e um sentimento de entre-ajuda e admiração mútua acentuados) ou bom ser humano (evidenciada pela sua relação com as crianças, a sua vontade de retomar relações com a filha, e mesmo o sentido de proteccionismo relativamente à personagem de Cassidy – nunca objecto de desrespeito ou julgamento); 2) o carácter de não-opção, muitas vezes, associado à verificação de alguns estereótipos negativos – apresentando a confirmação dos mesmos (nomeadamente, a sobre-sexualização, a bebida e o ego, impeditivos à efectivação da única opção que Randy tem de total redenção no que se refere à sua relação com a filha), assumindo-os frontalmente e de forma não desresponsabilizante, apresentando-os como características da personagem. Não desculpabilizando os erros de Randy, o filme não incorre na tentação de os generalizar enquanto constructos de ordem exclusivamente social – não tornando passível a generalização, optando por apresentá-los como partes do desenvolvimento individual daquela personagem em específico. Com efeito, enquanto parte do desenvolvimento, não deixa de ser isso mesmo: uma pequena parcela de um ser que, porque multidimensional e humano, é falível, não por ser homem, mas por ser pessoa.
Porque os média – os filmes, os livros, as histórias que ouvimos e contamos – tendem à categorização – é mais fácil agir/julgar mediante pré-conceitos do que assumir/respeitar a individualidade de cada um –, é que se torna tão fulcral recordar que a base da nossa comunicação deve partir do reconhecimento de que a nossa condição de pessoas é indissociável à verificação de pluralidade, numa rede de múltiplas especificidades. Questões como contextualização epocal ou aglutinante generalização colectiva – que leva a que determinados comportamentos sejam perpetuados por não questionamento e por tipificação das relações sociais entre pessoas –, tornam-se conceitos chave para compreender, por um lado, uma diferenciação necessária entre um passado e um presente desejavelmente diferentes no que se refere à normatização de papéis sociais vividos de forma estanque e estereotipada; e, por outro lado, algo paradoxalmente, a necessidade de não desresponsabilizarmos estes comportamentos como falsos problemas porque falsas realidades.
Nessa medida, nunca os nossos comportamentos/a nossa individualidade podem estar subordinados a esses códigos de suposta facilitação da comunicação: os estereótipos multiplicam-se por essa passividade face à mudança, e à perigosa apatia no que se refere aos estímulos com que somos confrontados que, directa ou subrepticiamente, no que diz respeito a este tema em específico, influenciam muitos rapazes desta geração no sentido de “agirem/serem” de determinada maneira hoje, porque este se seguiu a um ontem em que os homens agiram/foram da mesma maneira, e foi sempre aceite que assim fosse. No entanto, os tempos mudam e, da mesma forma que os meios de subversão se multiplicam – e se reproduzem as possibilidades de se transmitirem mensagens desconstrutivas –, também se ampliam os meios de conhecer e desvendar estes instrumentos de subversão e perpetuação de ignorância e desigualdade. E, nessa medida, se, há décadas atrás, era categoricamente verdadeira a recorrência dos estereótipos analisados ao longo do presente trabalho, sê-lo-á igualmente que se tratam de comportamentos tornados relativos nas novas gerações de pessoas – suficientemente desenvolvidas para que a maioria das raparigas não sofra passivamente muito do que as mulheres (mães, avós) do passado sofreram; nem os rapazes queiram ser os clichés de insensibilidade a que foram sendo associados.
Francisco Rodrigues
Henrique Sousa
Júlia Gradim
Renata Ramos
Tiago Cruz
UCP.SI
Nesta medida, embora o conto/filme BBM o transmita com um objectivo totalmente distinto – anteriormente abordado e não sendo o objecto desta análise –, é notória a exploração de diversos outros estereótipos de masculinidade (mais ou menos ofensivos), nomeadamente:
a) a rudeza – sendo particularmente evidente em momentos do livro - suprimidas no filme – em que Annie Proulx descreve comportamentos de higiene de Ennis, negando, por um lado, o naturalismo geralmente associado a uma história de amor – uma emoção geralmente representado de forma imaculada neste tipo de narrativas –, ou o repúdio pela sujidade (ou preocupação excessiva com o físico) geralmente associado à imagem do homem homossexual feminino;
b) a agressividade - particularmente evidente na personagem de Ennis del Mar que representa uma característica geralmente associada ao sexo masculino no que se refere à dificuldade de gestão – e, principalmente, verbalização – dos de sentimentos. Ennis é, nessa medida, uma personagem que fala pouco para o tanto que sente, e a violência trata-se, por isso, de uma resposta recorrente a quaisquer acontecimentos com os quais não consegue/sabe lidar, traduzido, no conto/filme: numa perspectiva de demonstração de afectividade – o companheirismo entre Jack e Ennis, numa fase inicial, de clara evolução do seu relacionamento, é demonstrado por agressões provocatórias (vistas como um divertimento) –; ou sob a óptica de confrontação (quase) territorial – incorrendo em acções violentas só para demonstrar que, de alguma forma, as pode efectivar, como, por exemplo, quando canaliza a sua revolta/frustração numa rixa de rua, injustificada, depois de ter discutido com a esposa. Nesta perspectiva, confirma-se, neste conto, a ideia do macho-alfa, que sente a demonstração de sentimentos como algo que, de alguma forma, o reduz quando em relação com outros indivíduos (particularmente, do sexo masculino), sem que, no entanto, possa restringir o facto de sentir intensamente, mas antes traduzindo esses sentimentos fisicamente – também presentes, em Ennis, no momento em que, afastado pela primeira vez de Jack, vomita numa esquina, escondido, gritando para um rapaz que passa e que o vê naquela condição; no conto, só mais tarde partilha com Jack a sua reacção ao seu afastamento, num raro momento de confidência por parte do primeiro.
c) a sobre-sexualização – sendo, no entanto, um dos aspectos de mais discutível verificação neste conto/filme (uma vez que, principalmente o segundo, conforme já explanado, é bem sucedido na romantização normalizante da relação de Ennis e Jack), trata-se de uma representação comum nas demais produções fílmicas do cinema comercial americano e dos média em geral – particularmente no que se refere às tão perigosamente (re)vistas teen comedies como American Pie ou Not Another Teen Movie, em que rapazes e raparigas são representados, respectivamente, como viciados em sexo e como objectos sexuais. No entanto, com graus de divergente ostentação desta vertente excessivamente sexual, estes dois papéis, associados a homens e a mulheres, são representações comuns perpetuadas pelos referidos meios de comunicação, assumindo-se como uma divergência de género a importância que homems atribuem ao âmbito físico das relações entre pares sexualmente activos. Neste conto/filme, com efeito, será discutível a verificação deste estereótipo – tão simplista do que é a relação entre pessoas, homens ou mulheres –, embora haja elementos que indicam para a sua representação: o início da relação sexual de Ennis e Jack é apresentado como um impulso incontrolável, (quase) como uma necessidade de quebrar o período de abstinência (potenciada pela natureza da profissão, que requeria o seu afastamento das famílias durante longos períodos de tempo), que só mais tarde é desenvolvido, nas obras, sob a óptica de romance que se estende da vertente física para a afectiva. Esta vertente é, ainda, enfatizada, pela forma como o próprio Ennis verbaliza a sua incompreensão face àquilo que sente relativamente à sua relação física com Jack: Ennis é o único dos dois homens que nunca assume/verbaliza (para si ou para os outros) sentir atracção por outros homens, antes descrevendo a sua relação com Jack como um caso único e fora do que é, para si, normal – assunção esta que se relaciona, maioritariamente, com questões culturais específicas da personagem (em virtude da sua educação e o seu contexto, a homossexualidade não é vista por Ennis como algo de natural), mas pode imbuir o facto de que a personagem é pela primeira vez confrontada com a sua atracção por um homem (e não homens) de um novo significado, por se tratar da primeira vez em que é confrontado com um longo período de abstinência, já que o Verão em que conheceu Jack, marcou também o seu primeiro trabalho como pastor. Como anteriormente referido, a necessidade de uma relação física entre Ennis e Jack, embora seja desenvolvida, ao longo da história, enquanto uma dependência de cariz essencialmente afectivo, mantém-se sempre no decorrer da mesma: Ennis mantém uma relação física que, ainda que esporádica, revela essa necessidade, enquanto que Jack a evidencia de forma mais frequente, recorrendo, por isso, à prostituição de modo a corresponder às carências de uma relação física homossexual.
d) Desresponsabilização e desprezo pela figura feminina enquanto elementos que justificam o adultério – sendo verdadeira a assunção de que, culturalmente, adultério era um tipo de comportamento geralmente associado ao homem típico de um passado (mais ou menos) recente, também o é que continua, embora num grau muito menos acentuado, em pleno século XXI, a ser mais esperado (e menos condenado) que um homem apresente comportamentos infiéis do que uma mulher nas mesmas condições (sendo que à segunda se associa igualmente muito mais a capacidade de perdoar). Nesta medida, são muitos os estímulos mediáticos, sociais ou artísticos, que perpetuam permissivamente esta perspectiva condescendente do homem enquanto um ser incapaz de ser relacionalmente responsável – e da mulher como um ser, por contraposição, passivo, ou desviante quando incorre nos mesmos comportamentos comummente desculpados enquanto conduta masculina –, sem se denotar a intenção de quebrar com um estereótipo cujo fundo de verdade se extinguiu, em perspectivas tão categóricas, há décadas atrás. Ennis é, no entanto, um homem deste passado: um pai de família e o típico homem da casa, incapaz de assumir responsavelmente a sua relação com outra pessoa (que, apesar de assente em pressupostos verdadeiros, de um sentimento que o é igualmente, não lhe destitui do seu carácter adúltero) e, em conformidade, de abandonar a mulher e as filhas – em virtude, igualmente, das repercussões desse acto, mas essencialmente por ter um sentimento de dever e de necessidade de correspondência ao que a sociedade espera de si –, ou mesmo quebrar com o seu comportamento de infidelidade. Alma é, com efeito, representada igualmente como um ser passivo, que, no único momento em que nega esta tendência, é fisicamente admoestada pelo marido – configurando-se como mais um exemplo da reacção-padrão de Ennis quando confrontado com algum estímulo que sente como ameaçador aos mais diversos níveis (conforme explicado anteriormente).
Relativamente ao último ponto, concernente à relação familiar, Ennis e Jack evidenciam duas perspectivas de uma mesma vivência de forma claramente exemplificativa do que tem vindo a ser abordado neste trabalho (mesmo em pontos não directamente relacionados), enquanto representações culturais – motivadas, na mesma medida e algo ciclicamente, igualmente pela cultura e o contexto sociais –, imiscuídas no domínio do subtexto e, nessa medida, porque não questionadas, se foram mantendo como verdadeiras ao longo dos tempos: em Jack, denota-se a verificação da confrontação territorial, a ideia da família enquanto objecto do ritual masculino da afirmação de uma identidade dominante – presente na discussão entre este e o pai de Lureen (esposa de Jack), à mesa, em que Jack impõe a sua preponderância do seu papel decisório na educação das filhas –; em Ennis, denota-se a clara dificuldade em lidar com o seu papel na família (enquanto referente à sociedade que a integra), porque inseguro de ser capaz de corresponder ao que essa tarefa lhe exige - insegurança que motiva a agressividade da personagem e a procura de manter uma situação familiar instável a todo o custo (por pressão auto-imposta, bem como enquanto resposta disfuncionalmente conformista a um pressuposto social), preterindo a verdade em relação à simples hipótese de negar essa conformidade social (e, nessa medida, agir como indivíduo racionalmente autónomo). Com efeito, sendo verdadeiro que, por um lado, Brokeback Mountain corresponde a um objectivo – o de subverter a relação do leitor/espectador com os estereótipos associados à homossexualidade a partir do seu questionamento a partir de motivos acentuadamente masculinos (e sobre-masculinizados) – e a um tempo específicos – em que a preponderância dos estereótipos desencadeava a constante categorização de papéis, e a formulação, por consequência, de verdadeiras personagens-tipo –, por outro lado, a perpetuação destes pressupostos por parte das inúmeras obras (principalmente fílmicas) da contemporaneidade, não integra, na maioria dos exemplos, semelhantes justificações e intentos.
Pelo contrário, existem, no entanto, obras bem sucedidas no que se refere à exploração de estereótipos que, por contraste, ajudam a subverter a assunção de unidimensionalidade que este tipo de perigosa categorização pode desencadear. Nesta medida, filmes como “Cinderella Man” – do mesmo ano, 2005, por Ron Howard – ou “The Wrestler” – 2008, de Darren Aronosfsky –, exploram representações tipicamente masculinas, ao mesmo tempo que as enquadram, essencialmente, como aspectos integrantes da sua personalidade, mas não únicos, na sua condição de meras parcelas; isto é, são características frontalmente assumidas, mas tornadas secundárias pela sua irrelevância face ao que aqueles homens são, enquanto pessoas, e não como passivos entes de um grupo que lhes determina formas de ser e de agir, individual e colectivamente. Com efeito, embora partilhem de uma premissa narrativa parcialmente semelhante, ambas as personagens assumem caminhos divergentes – materializando a pluralidade da condição de ser humano, invocada anteriormente.
Nesta medida, “Cinderella Man” e “The Wrestler” partilham apenas o facto de apresentarem duas personagens (respectivamente, J. Braddock e Randy), cuja profissão é tipicamente masculina – são profissionais de desportos de luta, respectivamente, Boxe e Luta livre –, e ambos se configuram (e estão rodeados de) signos de virilidade. J. Braddock (“Cinderella Man”) é, com efeito, um boxer americano que, após ter terminado a sua carreira, se vê obrigado a voltar a lutar quando ele e a família (a esposa e três filhos) são confrontados pela instabilidade económica da Grande Depressão dos anos 30. Randy é um profissional de Luta livre e um homem de família, que se deixa corromper pelas circunstâncias do seu meio profissional (a fama, as drogas, álcool e o adultério) , a ponto de, no momento em que a narrativa nos apresenta a personagem, este se encontrar sozinho a viver numa roulotte, alienado pela filha e esposa, sentindo-se reduzido enquanto wrestler (em final de carreira forçado pela sua saúde) e enquanto homem (que falhou em todas as decisões e dimensões do seu projecto de vida). As diferenças entre personagens/narrativas são, nesta medida, evidentes:
a) J. Braddock é um homem representativo da nobreza de carácter, do espírito de sacrifício e da confirmação de valores humanistas (algo dicotomicamente, tornando secundário o facto de ser um homem cuja profissão deriva da agressividade, pela contraposição com uma postura moderada e pacifista no seu quotidiano). Nesta medida, embora seja discutível a desejabilidade de exaltar o facto deste ter sacrificado o seu corpo e dignidade pela família como o aspecto mais representativo da sensibilidade de Braddock – por se incorrer no risco de recair sobre o estereótipo contrário, anteriormente referido, do homem enquanto elemento mais preponderante/dominante no contexto familiar –, trata-se, mais uma vez, de um aspecto de contextualização epocal, sendo inegável que, em virtude da própria condição da mulher na sociedade de então, o esperado seria que fosse o homem a responder/agir perante uma crise. Acresce ainda a este aspecto, o facto de que o filme explora, igualmente, estereótipos masculinos no sentido de ilustrar esse mesmo ambiente social, pela existência de personagens masculinas que servem de contraponto ao protagonista (personagens agressivas, imoderadas (até provocatórias) do ponto de vista sexual, individualistas, etc.). No entanto, J. Braddock apresenta-se como a alternativa a este ponto de vista simplista do sexo masculino – expressivamente sugerido no facto de ele ter decidido ir pedir dinheiro aos antigos colegas revela um altruismo que vai contra a noção de masculinidade que era considerada o paradigma do homem da época.
b) Em “The Wrestler”, a abordagem é claramente divergente e algo dicotómica, efectivando-se a exploração dos diversos estereótipos/características associadas à masculina no sentido em que estas tomam parte da especificidade da personagem, conseguindo, ao ponderar o seu carácter de fenómenos de índole individual, desproblematizar, desmistificando: 1) o carácter excessivamente dramático (e condenável) associados à ocorrência de determinados comportamentos tipicamente masculinos – uma vez que o facto de Randy ser um homem viril e forte, em nada diminui a sua condição de bom companheiro e profissional (assente na sua relação com os outros lutadores, em que não é evidenciado nenhum carácter de real agressividade/competição, e um sentimento de entre-ajuda e admiração mútua acentuados) ou bom ser humano (evidenciada pela sua relação com as crianças, a sua vontade de retomar relações com a filha, e mesmo o sentido de proteccionismo relativamente à personagem de Cassidy – nunca objecto de desrespeito ou julgamento); 2) o carácter de não-opção, muitas vezes, associado à verificação de alguns estereótipos negativos – apresentando a confirmação dos mesmos (nomeadamente, a sobre-sexualização, a bebida e o ego, impeditivos à efectivação da única opção que Randy tem de total redenção no que se refere à sua relação com a filha), assumindo-os frontalmente e de forma não desresponsabilizante, apresentando-os como características da personagem. Não desculpabilizando os erros de Randy, o filme não incorre na tentação de os generalizar enquanto constructos de ordem exclusivamente social – não tornando passível a generalização, optando por apresentá-los como partes do desenvolvimento individual daquela personagem em específico. Com efeito, enquanto parte do desenvolvimento, não deixa de ser isso mesmo: uma pequena parcela de um ser que, porque multidimensional e humano, é falível, não por ser homem, mas por ser pessoa.
Porque os média – os filmes, os livros, as histórias que ouvimos e contamos – tendem à categorização – é mais fácil agir/julgar mediante pré-conceitos do que assumir/respeitar a individualidade de cada um –, é que se torna tão fulcral recordar que a base da nossa comunicação deve partir do reconhecimento de que a nossa condição de pessoas é indissociável à verificação de pluralidade, numa rede de múltiplas especificidades. Questões como contextualização epocal ou aglutinante generalização colectiva – que leva a que determinados comportamentos sejam perpetuados por não questionamento e por tipificação das relações sociais entre pessoas –, tornam-se conceitos chave para compreender, por um lado, uma diferenciação necessária entre um passado e um presente desejavelmente diferentes no que se refere à normatização de papéis sociais vividos de forma estanque e estereotipada; e, por outro lado, algo paradoxalmente, a necessidade de não desresponsabilizarmos estes comportamentos como falsos problemas porque falsas realidades.
Nessa medida, nunca os nossos comportamentos/a nossa individualidade podem estar subordinados a esses códigos de suposta facilitação da comunicação: os estereótipos multiplicam-se por essa passividade face à mudança, e à perigosa apatia no que se refere aos estímulos com que somos confrontados que, directa ou subrepticiamente, no que diz respeito a este tema em específico, influenciam muitos rapazes desta geração no sentido de “agirem/serem” de determinada maneira hoje, porque este se seguiu a um ontem em que os homens agiram/foram da mesma maneira, e foi sempre aceite que assim fosse. No entanto, os tempos mudam e, da mesma forma que os meios de subversão se multiplicam – e se reproduzem as possibilidades de se transmitirem mensagens desconstrutivas –, também se ampliam os meios de conhecer e desvendar estes instrumentos de subversão e perpetuação de ignorância e desigualdade. E, nessa medida, se, há décadas atrás, era categoricamente verdadeira a recorrência dos estereótipos analisados ao longo do presente trabalho, sê-lo-á igualmente que se tratam de comportamentos tornados relativos nas novas gerações de pessoas – suficientemente desenvolvidas para que a maioria das raparigas não sofra passivamente muito do que as mulheres (mães, avós) do passado sofreram; nem os rapazes queiram ser os clichés de insensibilidade a que foram sendo associados.
Francisco Rodrigues
Henrique Sousa
Júlia Gradim
Renata Ramos
Tiago Cruz
UCP.SI
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