quinta-feira, 4 de junho de 2009

Séries de Televisão - Estereótipos LGBT

Num contexto actual, de grande desenvolvimento criativo e adesão universal no domínio da ficção em televisão – potenciados, significativamente, pelo crescimento do mercado americano –, recupera-se a correspondência entre este meio e a sua potencial (hipotética?) função formativa, não só assente na definição da televisão como um âmbito potenciador de discussão de diversas temáticas, como, igualmente, pelo seu amplo campo de acção no que concerne à representação/visibilidade das inúmeras realidades dos diferentes públicos. Com efeito, as séries de televisão – que, por definição, possuem maiores elencos de personagens recorrentes e secundárias, cada uma apresentando uma mundividência e uma linha narrativa próprias –,configuram-se como meios privilegiados à representação de todas as pessoas, realidades, personalidades, problemas e vivências – pelo que, sendo esta asserção mais verdadeira quando maior for o mercado, a Televisão americana reveste-se como o paradigma deste potencial de diversidade, sem que, no entanto, não se deixe absorver pela especificidade do seu contexto: a um país de grandes discrepâncias e ecletismo culturais corresponde uma multiplicidade de paradoxos sociais, traduzindo a diversidade na limitação, quando a preponderância dos (diversos) credos ecoa um determinismo moral que faz ignorar a polivisão no sentido de apresentar uma visão consensual de uma realidade que é relativa. Com efeito, não motivados pela liberdade criativa, mas, como um aspecto de grande preponderância no que se refere à definição da produção de ficção como uma indústria, pelos pressupostos monetários, o sentido de promessa de abertura, de visibilidade e da formação dos públicos para a diferença – seja numa perspectiva de auto identificação ou reconhecimento de outras realidades – associados à televisão como um instrumento educativo são, não raras vezes, desvirtuados pela tipificação de personagens, formuladas segundo uma ideia consensual e universalizada (um estereótipo) das realidades que representam: evitando conflitos e polémicas – em nenhum outro país do mundo ocidental, no seio das grandes cadeias televisivas, se sente tanto a necessidade de não ferir susceptibilidades do público maioritário –, assegura-se a fidelização de um maior número de audiências (não específicas, normalizadas) – em nenhum outro pais do mundo ocidental, as pressões monetárias dos patrocinadores penetram tão permissivamente nos conteúdos criativos, resultando numa indústria vanguardista em termos criativos (porque o financiamento permite a hiperbolização das condições/dimensões das produções), mas acentuadamente fechada em termos sociais. No que se refere à visibilidade dos públicos LGBT – referente à comunidade lésbica, gay, bissexual e transgénero –, esta dicotomia entre formação e prevalência dos interesses económicos é particularmente evidente a ponto de, não obstante de, nos dias de hoje, nos encontrarmos a viver um período de mudança (ainda que gradual), ainda prevalecem na Televisão, não só a verificação de alguns estereótipos, tão verdadeira hoje como antigamente, como, igualmente, uma acentuada escassez (ou ausência categórica) de personagens LGBT recorrentes, representadas numa perspectiva multidimensional ou não secundarizada – não sendo, na mesma medida, raros os momentos em que ao desenvolvimento de linhas narrativas que abordem essa temática se fazem corresponder polémicas (quebra de audiências, pressões de alteração por parte dos produtores, expressão de descontentamento por parte de fãs, ou, em casos mais extremos, total supressão desses conteúdos), fora dos estúdios, na imprensa e nos bastidores. Por essa razão, a representação destes públicos tende a ser padronizada segundo modelos unânimes, porque inquestionados e porque, não obstante da referida evolução neste âmbito, ao nível social, continuam a configurar-se como realidades às quais algumas camadas dos públicos maioritários não se encontram sensíveis, outras se deixam limitar pelo preconceito activo, e (quase) todos materializam o acentuado desconhecimento face a estas temáticas LGBT – que deveria definir-se como um argumento acrescido da necessidade de mudança da televisão, mas que, paradoxalmente, nem sempre a verificação dessa carência corresponde à sua colmatação responsável:

a) A homossexualidade como um comportamento marginal ou como um capricho associal são representações que, embora tenham tido uma expressão exponencialmente mais significativa no passado – e se configuram como o aspecto em que o desenvolvimento de temáticas LGBT mais evoluiu numa perspectiva de quase total dispersão –, ainda se fazem notar pela sua persistência residual, particularmente no que se refere a séries criminais: em que tendências como a representação de relações entre pessoas do mesmo género que acabavam, não raras vezes, por se tratar de crimes passionais de traços obsessivos, inseridos em contextos acentuadamente apresentados associados a desvios sexuais e relações sociais disfuncionais, se encontram traduzidos em séries recentes e mainstream, de que são exemplos episódios recentes da série policial Life. Com efeito, nos 32 episódios transmitidos, embora nenhuma personagem recorrente seja homossexual ou bissexual: em quatro dos seus episódios, marcam presença uma personagem feminina bissexual que é dealer, outra personagem feminina bissexual que incorre em comportamentos sado-masoquistas com a secretária, enquanto o seu marido se encontra morto noutra parte da cidade, duas mulheres semi-nuas incorrem numa relação sexual numa festa gótica, numa morgue, e, em apenas um, duas personagens masculinas homossexuais são representadas numa relação estável, até um deles ser o responsável pela morte do parceiro.

Nessa medida, embora seja uma tendência comum das séries actuais – e em Life é-o particularmente – a de explorar o carácter de ambiguidade moral das suas personagens em que, nessa perspectiva, uma significativa parte das personagens heterossexuais são alvos do mesmo tipo de representação – na mesma medida que nas demais séries policiais, a maioria dos assassinos/criminosos são heterossexuais –, não se trata de um aspecto que atenue a grande diferença que se mantém: enquanto que, em cada ano televisivo, nas grandes cadeias televisivas, generalistas, existem, no máximo, duas ou três personagens LGBT (em que apenas uma ou duas são recorrentes), o facto de que as personagens heterossexuais permanecem como a grande maioria implica que seja possível a não categorização dessas personagens pela sua orientação sexual; isto é, ao apresentar um espectro alargado de personagens heterossexuais, é possível estabelecer-se um processo de comparação dessas representações pela apresentação de exemplos que desvirtuam esses comportamentos condenáveis como tendências dominantes, específicas daquele grupo social – sendo que, relativamente à escassez de personagens homossexuais, se verifica precisamente o contrário, estabelecendo-se uma vinculação mais directa (falaciosa e não verdadeira) entre o incorrer em comportamentos desviantes e a orientação sexual.

b) Associada ao ponto anterior e ocorrendo nos mesmos contextos televisivos – mas não exclusiva a estes –, a sobre-sexualização das personagens homossexuais/bissexuais/transexuais é, igualmente, uma tendência recorrente, embora não tão eficazmente suprimida como a anterior, em virtude de ser mais ou menos aceite, particularmente em momentos de intencionada comicidade, estabelecer-se uma correspondência unidimensional das personagens LGBT à necessidade de insinuação sexual – sugerindo-se formas essencialmente diferentes e específicas de viver a sexualidade, no que se refere às relações heterossexuais e homossexuais, mais uma vez ponderando-se o factor de maior ou menor diversidade de representações, respectivamente, como elementos que, impedindo a comparação positiva, incutem uma visão caracteristicamente unidimensional relativamente às segundas. O que, em articulação com o ponto anterior, no que se refere à associação das personagens homossexuais a comportamentos desviantes, se traduzia, nas séries criminais do passado (a que correspondem apenas resíduos, conforme anteriormente referido, no presente), a comportamentos fetishistas frequentemente associados às relações fugazes e irresponsáveis ou obsessivas entre pessoas do mesmo género, actualmente verifica-se a mesma unidimensionalidade a contextos/características menos associados a questões de moralidade, mas mais vinculados a uma tipificação de um modelo de personalidade exibicionista, percebidos: quer numa óptica de inadequação social – geralmente associadas ao homem homossexual com características femininas (pela presença da personagem-tipo do homem gay insinuante, nunca apresentado numa relação estável) ou à mulher masculinizada (pela recorrência à personagem-tipo da mulher camionista ou guarda prisional, que deslocaliza a sua incapacidade de integração social, pela agressividade) -, quer tomados como caprichos associais, superficiais e passageiros – particularmente recorrente no que se refere às relações lésbicas como “fases experimentais”, associadas à curiosidade e objectos de voyeurismo e interesse masculino, que perpetuam uma ideia descredibilizante da assunção de uma identidade sexual como uma vontade, uma opção, uma intenção (a ponto de se tornar, na televisão actual, uma estratégia comum nas épocas de contabilização de audiências – as épocas de sweeps –, a apresentação de cenas com este tipo de conteúdo para captar o público masculino, seguida por séries aclamadas pela crítica como, recentemente, Donas de Casa Desesperadas, Fringe, House ou a já referida Life, ou amplamente exploradas pela polémica série Nip/Tuck – em que, a juntar aos inúmeros exemplos de exploração da sobressexualização em personagens homossexuais e heterossexuais, recentemente materializou a intenção voyeurística e centralidade masculina presente desde o início da mesma na linha narrativa da única personagem recorrente lésbica da série, que incorre numa relação sexual bizarra com o casanova e adúltero Christian). Os dois tipos de tipificação apresentados convergiram, recentemente, num episódio da aclamada série Rescue Me, em que, em momentos distintos do mesmo: 1) o personagem principal, interpretado por Dennis Leary, discute com a ex-mulher a sua recente relação homossexual como uma forma de o afectar pessoalmente, ao que ela provocatoriamente responde beijando ostensiva e publicamente a namorada – numa perspectiva de confirmar a asserção do ex-marido; 2) em conjunto com a sua companhia de bombeiros, o mesmo personagem é convidado para uma festa exclusiva para homossexuais, em que é apresentada uma grande parte dos estereótipos geralmente associados aos homens homossexuais – a feminilidade, o exibicionismo (recorrendo à representação comum dos homens homossexuais semi-nus a dançar com outros homens), a preocupação com o físico (em que a obsessão pelo aspecto visual é traduzida por demonstrações/comparações da forma física de uns e outros, e comentários insinuantes constantes), a inadequação social (um dos figurantes, encontrava-se a dançar no meio da pista, vestido com adereços de roupas de dança, típica do imaginário dos anos 70) –, motivando um assumido “sentimento de medo” das personagens heterossexuais que frequentaram a festa – sugerindo-se, assim, a existência de comportamentos característicos da comunidade LGBT como se tratasse de uma subcultura marginal incompreensível aos olhos das personagens/pessoas “normais”, elementos integrantes da cultura dominante.

No entanto, sendo verdadeiro que – à excepção de alguns formatos de sitcoms familiares, em que, como já anteriormente mencionado, os primeiros estereótipos são explorados numa perspectiva de (duvidosa) comicidade ou, no que concerne aos segundos, de exploração das relações lésbicas numa perspectiva voyerística (que sucessos musicais como o single “I Kissed a Girl”, de Kathy Perry, parecem confirmar esta estratégia como uma tendência crescente)– este tipo de representação apresenta, actualmente, uma tendência de acentuado decrescimento, também o será que se trata de um problema que se desenvolve, actualmente, noutros parâmetros, nomeadamente no que se refere ao ponto que será abordado em seguida.

c) A subssexualização das personagens homossexuais parece, assim, configurar-se como uma tendência actual, validada por inúmeros exemplos de séries americanas geralmente categorizados como séries que contribuíram como bons exemplos para a visibilidade das temáticas LGBT – mas que, de alguma forma, ao validarem a asserção, anteriormente sugerida, da necessidade de atenuar o vanguardismo social numa perspectiva de alcançar, simultaneamente, uma resposta consensual do público dominante e doutros públicos secundarizados, através de uma postura não verdadeiramente comprometedora em termos de representação igualitária de relações entre pessoais do mesmo género, subvertem a possibilidade de uma representação igualitária. Com efeito, da mesma forma que, quando a tendência dominante era a associação entre a homossexualidade/ bissexualidade/ transexualidade como comportamentos desviantes, as personagens eram definidas pelas suas posturas sexuais como algo de verdadeiramente significativo e explicativo da sua condição de marginais, actualmente, traduz-se a tentativa de normalização numa perspectiva análoga, em que as personagens continuam a ser definidas unidimensionalmente e essencialmente pela sua sexualidade, cujos comportamentos numa relação, algo paradoxalmente, se demarcam pela inexistência (ou não sugestão, nem menção) da sua vida sexual, em que o contacto físico entre parceiros é quase inexistente.

Nessa perspectiva, desenvolvem-se, a partir daqui, estereótipos narrativos conciliadores relativos à representação de personagens LGBT em modelos formulados para salvaguardar a adesão do público heterossexual (dominante): descoberta da homossexualidade na adolescência, sob a óptica da gestão das expectativas familiares; dificuldades dos casais homossexuais no sentido de constituir um agregado familiar (adopção ou gravidez assistida); lutas contra o sistema judicial que não reconhece como figura parental um dos membros da relação entre pessoas do mesmo género no processo de custódia dos filhos do casal, etc.

Nesta medida, não obstante de se configurarem como aspectos de acentuada relevância no que se refere à representação de problemas e vivências comuns a grande parte da comunidade LGBT – de que se destaca o exemplo da personagem Kerry Weaver, interpretada por Laura Innes na série Emergency Room, que, apesar de ser uma personagem secundária, fez desenvolver de forma muito completa, realista e constitutiva de um essencial processo de visibilidade no que respeita a estas temáticas –, a repetição dos mesmos manifesta-se numa padronização reveladora da referida unidimensionalidade com que estas personagens são apresentadas, perpetuando um determinismo (dramático) associado à vivência de uma orientação sexual em que nunca se pondera assumir a possibilidade de normalidade, em que se imbua de um carácter desproblematizado e seja apresentada como um não-assunto – de que se pode, no entanto, afirmar a existência de uma rara excepção na série Buffy: TVS, através da personagem Willow (Alyson Hannigan), apresentando um carácter acentuadamente subversivo na utilização de metáforas (visuais e temáticas) com o objectivo de narrar uma das mais bem desenvolvidas relações lésbicas da televisão (e atenuar, no processo, a probabilidade de censura desses conteúdos, literal ou traduzida na adesão do público à série). Com efeito, sendo verdadeiro que a relação de Willow – uma das personagens principais da série e das mais queridas pelo público – e Tara (Amber Benson) foi desenvolvida sob uma óptica não explicitamente sexual – confirmando a tendência de supressão do contacto físico homossexual, referida anteriormente –, o carácter metafórico da série permitiu que a dimensão sexual do relacionamento das duas personagens se configurasse normal e desproblematizadamente, utilizando o pretexto de se definirem ambas como wiccas como um subterfúgio que aludia à sua pertença a uma comunidade, e em que a relação física das personagens era sugerida por momentos simbólicos (mas com uma carga sexual evidente). Nesta medida, embora tendo sido acentuadamente vanguardista e subversiva em termos de conteúdo, o desenvolvimento desta relação na série configurou-se pela gestão, e, em certa medida, confirmação, da necessidade de subsexualização de personagens homossexuais como estratégia de integração – o primeiro contacto físico explícito entre Willow e Tara deu-se passado uma temporada do início da sua relação, sendo que apenas passadas duas temporadas e meia é sugerido de forma literal um acto sexual entre ambas –, bem como acresceu, ainda, a adesão acrítica a uma propensão comum de inexistência de personagens bissexuais na televisão americana: desta necessidade de consensualidade, advém, igualmente, uma tendência comum e geralmente acriticamente ignorada no que se refere à ainda mais escassa representação da bissexualidade na televisão, a ponto de ser comum a (quase) total inexistência de personagens que se definam segundo esta orientação sexual – sendo recorrente, mesmo quando a linha narrativa se demarca pela descoberta de uma pessoa que previamente se assumia como heterossexual, da sua atracção por pessoas do mesmo género, essa personagem passar a assumir-se como homossexual, sem nunca ponderar a hipótese de ser, efectivamente, bissexual (de que Willow é apenas um exemplo) –, em virtude de uma dificuldade tácita no público dominante em ligar-se emocionalmente com uma orientação sexual que, falaciosamente, é geralmente associada a uma não-definição, e comummente definida pela ambiguidade.

No entanto, e à semelhança do outras séries, que, porque mais recentes, se vão já desenvolvendo no sentido de experimentar os limites do desenvolvimento social actual, de que se falava no início da corrente reflexão e a gradualmente maior abertura dos públicos dominantes face a estas temáticas - de que o exemplo mais paradigmático será, provavelmente, a série Brothers and Sisters, em que a desproblematização e a multidimensionalidade da personagem Kevin se apresenta como um significativo exemplo de normalização –, embora, por um lado, se mantenha uma tendência generalizada de sub-representação – as personagens LGBT continuam, ainda actualmente, a ser uma minoria que não respeita a proporção da realidade –, por outro lado, esta tem vindo a ser quebrada pelo aparecimento de personagens que servem de mote para o desenvolvimento de outras temáticas, associadas, entre outras dimensões da personalidade das mesmas, à sua orientação sexual: tendência iniciada por séries como Six Feet Under – em que a progressiva auto-aceitação da personagem David (interpretada por Michael C. Hall) se desenvolveu no sentido de abordar, igualmente, o dilema da personagem no que se refere à vivência da sua espiritualidade, desvirtuando a dissociação entre homossexualidade e a possibilidade de participação religiosa canónica, entre outros temas –, e que se vai mantendo com séries como Grey’s Anatomy – que, apesar de ter sido alvo de uma polémica inicial que levou ao despedimento de uma das actrizes (Brooke Smith), por razões que se mantêm meramente especulativas, manteve, no entanto, a intenção de abordar a temática da homossexualidade sob a óptica da descoberta e assunção da orientação sexual em pessoas que já não se encontram em fase de construção de personalidade (e todo o processo de redescoberta e redefinição inerente a este processo).

Exemplos como aqueles que vemos, igualmente, emergir na ficção televisiva espanhola – que, a partir da alteração legislativa no sentido de legalização do casamento entre pessoas do mesmo género, deu lugar a um crescimento exponencial de personagens LGBT em séries de grande dimensão, como Ombres del Paco ou Hospital Central, representadas de forma igualitária, mesmo em termos de conteúdos sexualmente explícitos –, deixam antever aquela que é, actualmente, uma tendência crescente de visibilidade deste tipo de temáticas na televisão, que ecoa uma maior disponibilidade à apreensão da existência de uma porção significativa da população que não se identifica com as personagens usualmente representadas neste meio, sob as figuras dos produtores – que, algo recorrentemente, capitalizam monetariamente o contexto cultural actual, caracterizado por esses públicos mais disponíveis a conceber a necessidade de diversificação da televisão nomeadamente no que se refere aos assuntos LGBT, como aqueles que representam uma comunidade que reclama, progressivamente, o seu lugar nas sociedade ocidentais de hoje. Nesta perspectiva, a tomando o exemplo Espanhol, que se demarcou pela necessidade da ficção acompanhar a evolução social real, e não o contrário – em contraposição com o modelo americano, em que a avanços e recuos ao nível social corresponde uma ficção igualmente periclitante e díspar em termos de qualidade das representações de personagens LGBT –, traduz-se a dicotomia que popula a ficção televisiva actual e se estende para os demais meios: o que o público LGBT reclama é a verificação prática do direito à visibilidade, não através de uma representação empática das suas realidades, mas precisamente pela absorção/integração não condescendente de personagens LGBT, cuja construção corresponda à efectivação autêntica do direito à indiferença, que, por sua vez, se coadune com uma proporção real, se apresente numa perspectiva igualmente multidimensional e que assente numa intenção de materializar uma aceitação que não deveria ser algo que tem que ser almejado ou desenvolvido, mas sim algo de inerente e inquestionável.

Francisco Rodrigues

Júlia Gradim

Henrique Sousa

Renata Ramos

Tiago Cruz

UCP SI

domingo, 3 de maio de 2009

Mulan - Análise do Conceito de Feminilidade

Baseado num poema tradicional Chinês que data do séc VI, d.C, Mulan é um filme de animação realizado em 1998 pelos estúdios Disney, cuja narrativa, no entanto, se pauta por divergir, à partida, das suas demais produções. Contrariamente ao desfile de princesas secundarizadas (submissas, em não raros casos) que constituíam o role de personagens femininas nas longas-metragens deste estúdio até então – à excepção, algo analogamente, de Pocahontas, de 1995 –, Mulan representa uma renovada alternativa a este padrão: trata-se de um filme centrado numa protagonista feminina que, não só assume a possibilidade de diferença/mudança numa sociedade altamente patriarcal – demonstrando um comportamento/vontade evidentemente dissonantes dos estereótipos/papéis associados à mulher da China de então –, mas também consegue fazer valer o seu valor individual de modo a ombrear em termos de força, e superar em termos de inteligência, todos os homens do exército chinês e, nessa medida, salvar a China, não pela espada, mas pela astúcia e intelecto.

Com efeito, baseando-se no referido poema – intitulado “A Balada de Mulan” –, que narra, em verso, a história de uma guerreira cujos feitos bélicos remontam ao séc. IV/V, a forma de abordagem – à partida, acentuadamente femininista – desta personagem mítica, neste filme, reflecte o carácter excepcional da figura que lhe dá origem: quer ao nível individual – uma vez que Mulan é o centro da narrativa e, em concordância com o estatuto de heroína, toma as decisões mais arrojadas e radicais para derrotar os seus inimigos, enquanto Shang (o protagonista masculino e interesse amoroso de Mulan) assume um papel secundário, principalmente quando as decisões não se reflectem directamente no plano militar –, quer no plano relacional – uma vez que, como anteriormente sugerido, Mulan não se define como uma princesa, frágil, insegura e cujo projecto de vida se limita à espera de um príncipe-salvador (geralmente o herói, protagonista da narrativa), antes se demonstrando uma personagem com motivações próprias e que, em conformidade, toma a iniciativa na relação com o tímido Shang.

Nessa medida, e sob a óptica de uma contextualização cultural, o filme explora amplamente os estereótipos geralmente associados à figura feminina, particularmente no âmbito do seu papel na sociedade – explorando-se com particular ênfase a questão de como o homem, enquanto a figura dominante daquela sociedade, via a mulher e a forma como estas se faziam corresponder aos papéis que eram (são?) de si esperados. No entanto, não obstante dessa premissa de actualização crítica, a eficácia – ou mesmo a intenção – de subverter esses estereótipos é discutível, já que o filme, embora estabeleça sempre uma comparação antagónica entre a apresentação desses estereótipos e uma protagonista que luta por “sobreviver” aos mesmos, segundo um comportamento claramente dissonante ao pensamento machista imperante então – ainda verificado, mesmo que de forma progressivamente mais residual, hoje –, acaba (quase) por configurar apenas uma parada/sucessão acrítica dessa mesma tipificação.

Nessa medida, se, por um lado, a subversão desses estereótipos se dá mais eficazmente com a referida contraposição da protagonista enquanto alternativa a um modelo patriarcal, por outro lado, porém, assumindo que é crítica a intenção de imbuir certos momentos - em que a abordagem desses temas de representação da mulher são centrais e em que a desvirtuação dos mesmos seria a mensagem desejável – de um tom cómico, a eficácia desta segunda estratégia é ambígua. Por conseguinte, esta ambiguidade deriva do facto de ser discutível a verificação do propósito de desencadear no público a consciencialização do absurdo destes estereótipos através de uma abordagem cómica a eventos narrativos que se pretendem vistos criticamente – ainda mais se enfatizando a ineficácia se assumirmos como público primordial da obra uma faixa etária infantil –, ou se, por outro lado, este método se configura como um modo de desresponsabilização da relevância e perigosidade dos mesmos, deixando espaço a um público que se vê passível de concordar com esses estereótipos – revestidos de inofensividade e/ou de irrelevância actual.

Com efeito, muitos são os temas que, em Mulan, reflectem o que, em vários outros filmes, séries ou livros, são estereótipos tratados, no entanto, com muito menor (ainda menor) consciência social – perigosos porque, à semelhança do que foi defendido no anterior texto, inquestionados.

Traduzindo em exemplos/temáticas:

a) Subordinação patriarcal/centralidade na figura masculina - O filme aborda esta tendência ao descrever um tempo em que era esperado que o homem resolvesse todas as crises e materializasse todas as vitórias, morais ou militares – sendo que, nessa medida, o paradigma do comportamento masculino se configurava, assim, pela confluência destas duas dimensões: o homem enquanto objecto de respeito indiscutível, estatuto a que era associada, no entanto, a responsabilidade de defender militarmente a aldeia. Nesse sentido, a música “I’ll make a man out of you” descreve amplamente o paradigma do homem da altura – forte, viril, capaz de suportar todas as adversidades -, em contraposição com a fraqueza geralmente associada às mulheres – expressa na frase que Shang, perante um exército de homens incapazes, se interrogava “did they send me daughters, when I asked for sons”.


No entanto, esta contraposição, em Mulan, perde expressividade ao narrar o percurso de uma personagem feminina que, mascarando-se de soldado, subverte as regras da sociedade patriarcal à qual é esperado que se subordine, e que, mesmo tendo sido alienada pelos companheiros soldados quando descoberto o seu disfarce – inerentemente, o seu género –, salva a China sem precisar de exércitos ou força física, desenvencilhando-se num mundo de homens e vencendo. Porém, sendo verdade que o filme subverte este estereótipo ao apresentar uma protagonista capaz e com personalidade auto-suficiente, com poder de iniciativa e sem ter clara e necessariamente como motivação a atenção da personagem masculina – já de si uma boa alternativa à ideia da personagem feminina formulada exclusivamente com o propósito de servir de interesse amoroso o protagonista (não só apanágio, como anteriormente referido, do universo Disney, mas igualmente própria dos filmes de acção, em que, depois do herói salvar o mundo, a princesa/ou a companheira de batalha, secundarizada, é o prémio da sua heroicidade) –, esta desvirtuação de estereótipos é anulada num desenlace narrativo em que Mulan, de alguma forma, reflecte a tendência imperante na utopia fílmica: o poder de iniciativa/ambição em personagens femininas é quase sempre ou alvo de descrédito ou sempre motivada por factores externos, geralmente associados à família – o altruísmo como característica essencialmente feminina não é, à partida, uma má representação, não fosse o facto de se imbuir de uma aura de tipo/modelo, de verificação impreterível – ou, por outras palavras, de estereótipo – ou validação masculina – motivadora dessa ambição/iniciativa de personagens femininas cujos sucessos tomam um plano acessório. Com efeito, as duas últimas representações estão presentes neste filme: Mulan não entra no exército por uma questão de afirmação pessoal e demonstração de auto-confiança, mas para impedir o pai de correr risco de vida; no final, quando confrontada com a hipótese de seguir a carreira militar (uma carreira exclusivamente masculina, naqueles tempos), ela escolhe activamente renunciar ao convite, e dedicar-se à família (apaziguando, no processo, o ego do superior da hierarquia militar Shang, entretanto deixado em ruínas aquando da revelação de que fora superado em força e em inteligência, não por um companheiro soldado, mas por uma mulher travestida).

Sendo, no entanto, evidente que se tratam de valores passíveis de serem percebidos positivamente – a mulher como um ser mais dedicado e altruísta não parecem, à partida, representações negativas –, esta verificação é, ainda, enfatizada pelo facto de que Mulan consegue sê-lo num contexto dissonante ao cânon, conseguindo integrar os valores humanistas (e racionais) num ambiente militar – o que é, por si só, uma representação feminina pouco ecoada, à excepção de exemplos mais recentes como as séries Alias, Sarah Connor Chronicles, ou os (menos recentes) filmes da saga Alien. Porém, definirem-se estas características como modelos de verificação necessária são o que torna esta associação como algo de questionável, por se configurarem em estereótipos que fazem corresponder à figura feminina uma maior propensão para a família, por sua vez percebida como uma necessidade reveladora de carência afectiva e, por isso, de vulnerabilidade – sendo esta uma correspondência que atribui um carácter de exclusividade destes sentimentos à mulher (embora, actualmente, o seja cada vez menos).

b) Mulher como objecto sexual/conceito de beleza – sendo este, talvez, o estereótipo mais comum, é, igualmente, aquele que é mais bem subvertido pela personagem de Mulan – porque esta salva a China por valor próprio, sem que consiga nenhum dos objectivos pela sua sexualidade, ou mesmo represente a versão intelectualmente submissa tão frequentemente explorada por filmes da mesma natureza (sob a forma das, já referidas, princesas da Disney que, não só se definem pela ânsia da chegada do príncipe, como também, geralmente, são alvos da malvadez de outras personagens femininas, mais uma vez perpetuando a ideia da competitividade feminina, geralmente materializada nas mulheres que são bruxas, velhas e sozinhas, que, por inveja, incorrem em comportamentos que as empurram para alienação da sociedade dominante). Nessa medida, ignorando-se o referido desenlace da personagem, já antes analisado, Mulan é declaradamente dissonante, à partida, em relação ao modelo de comportamento feminino que é descrito ao longo do filme, amplamente descrito no momento em que os soldados enumeram as características da mulher ideal, entoando a música (e a definição de) “a girl worth fighting for”. Descrevem-se, nessa medida, as capacidades associadas à manutenção da casa - havendo uma personagem que se expressa como alguém que “couldn’t care less what she’ll wear or what she looks like, it all depends on what she cooks” –, ou em conformidade com a ideia de centralidade masculina –“I want a girl who’ll marvel at my strengh, adore my battle scars” –, ou à vertente visual – evidenciadas por duas personagens que defendem “I want her paler than the moon; with eyes that shine like stars” – enquanto modelos reveladores do imaginário da mulher ideal.

Nesta medida, apesar de representar as personagens masculinas sob uma óptica incomum – negarem, de alguma forma, a ideia de que só a mulher é que tem esta necessidade familiar, ao apresentarem soldados que confessam a vontade de constituir uma família, e também de o fazer numa base de validação feminina -, não deixa de ser sintomático e representativo da subordinação feminina como comportamento modelo/padrão o momento em que, em resposta a Mulan, que pergunta “How about a girl who’s got a brain, and always speaks her mind?”, todos eles negam a preponderância da sua asserção. Desta forma, assumindo como verdadeiro que esta animação explora estes estereótipos numa intenção de desvendar o seu carácter absurdo – sendo discutível se o consegue eficazmente –, são inúmeros os outros filmes que o fazem agindo em conformidade e desencadeando, por isso, a validação destes mesmos estereótipos. Nessa medida, o paradigma da mulher dos filmes, da televisão – e, em tantos outros exemplos, da animação -, é, não raras vezes, aquela que é (inacreditavelmente) magra, que se relaciona com o sexo oposto segundo um de dois pólos: ou por submissão - perpetuando a ideia da personagem feminina validada enquanto objecto da afeição/protecção do protagonista masculino –, ou por sedução – não sendo raros os estímulos fílmicos em que a mulher define a sua participação exclusivamente enquanto objecto sexual, sobre-sexualizado (de que são apanágios óbvios os já mencionados, no anterior trabalho, teen movies, ou os filmes de acção claramente orientados para uma plateia maioritariamente masculina). Segundo estes modelos, às mulheres, vistas como inferiores, é-lhes incumbida a necessidade de compensar a sua inferioridade com outros atributos – problema este que se desenvolve, nos dias de hoje, na sobre-consciencialização corporal à qual a mente das novas raparigas se torna exponencialmente mais permeável – associada, evidentemente, à obrigatoriedade de beleza e magreza incutida pelos media actuais (sendo um modelo que é perpetuado algo ciclicamente uma vez que as actrizes de cinema e de televisão emergem simultaneamente como causas e efeitos desse mesmo ciclo em virtude da selecção de que são alvo para corresponder a requisitos de imagem e/ou idade).

c) Papel familiar - Assente numa mesma ideia de inferioridade feminina, o estereótipo que incute a associação da mulher à família faz-se corresponder como um comum significante de vulnerabilidade, porque revelador de uma necessidade afectiva impreterível e definitiva, representada como exclusiva ao sexo feminino – não obstante de, como já foi amplamente referido, a ligação à família não ser uma característica, em si mesma, negativa e do facto desta tendência de exclusividade ter vindo a ser atenuada com produções mais recentes. Com efeito, o primeiro só se torna um problema quando serve o propósito de perpetuar o estereótipo de que a vida familiar não é parte do quotidiano da mulher (da pessoa), mas antes o todo que define a existência da mulher (enquanto género), por isso, unidimensional. Em Mulan, apesar de evidenciada noutros momentos do filme, esta tendência torna-se particularmente evidente quando a protagonista é levada à casamenteira ao som de uma canção entoada pelas mulheres da aldeia, em que são enumerados os deveres associados à mulher no sentido de cumprir o seu dever social de criar uma família - o único projecto de vida possível –, revendo os tipos assentes numa perspectiva simplista da figura feminina enquanto elemento que só valida a sua existência social pelo casamento e, nessa condição, pela presença de um homem na sua vida – perspectiva ofensiva porque acentuadamente patriarcal e porque implica a necessidade da mulher corresponder a um determinado conjunto de atributos que configuram a expectativa da sociedade em relação à mesma.

Se, já antes referida, na música “A Girl Worth Fighting For”, esses atributos são amplamente descritos, a música “Honor to us all” – que quase serve de introdução ao filme –, explora-os segundo um significado muito particular, sugerindo a existência de um sentido de “orgulho” a ser absorvido pelas figuras femininas pelo acto de agir de acordo com esse modelo, assente na ideia de que a única forma de uma mulher trazer a honra à família é a conformidade. Nessa medida, nesta música, é descrito esse modelo: mais uma vez enfatizando as ideias da delicadeza (“each a perfect porcellain doll”) e da beleza, canalizadas para obter a atenção masculina (“men want girls, with good taste, calm, obedient who work fast-paced; with good breeding and a tiny waste”). Nesta medida, a ambiguidade da abordagem impera ao configurar-se esta enumeração pondo na boca de outras personagens femininas palavras marcadamente machistas – relegando, assim, as responsabilidades da perpetuação deste estereótipo às mulheres que vivem em conformidade com os mesmos (a clara maioria, de que apenas Mulan se dissocia), isto é, transmitindo a ideia de que são estas mulheres, indubitáveis produtos do facto de viverem numa sociedade patriarcal, os principais agentes promotores desse modo de vida reduzido e redutor. A individualidade da mulher – que assume e perpetua a norma, independentemente de o fazer ou por iniciativa ou reacção – é preterida em favor de uma única dimensão e medida de valor – “A girl can bring her family great honour in one way: by striking a good match” –, não obstante do facto de que se atribui, de alguma forma, o mesmo carácter unidimensional ao homem da mesma sociedade – “we all must serve our Emperor who guards us from the Huns, a man by bearing arms, a girl by bearing sons”.

Com efeito, sendo inegável o carácter subversivo de Mulan, em virtude da sua ideologia, abordagem e da sua protagonista incomuns – Mulan é uma rapariga forte, determinada, com personalidade e iniciativa, capaz de desenvolver projectos com sucesso e inteligência – também o é que, no entanto, falha em configurar-se como um filme verdadeiramente inovador pelo carácter tão evidentemente excepcional da história e da personagem – além de ser a única mulher da aldeia, em nenhum momento da história esta serve como modelo para outras mulheres ou raparigas, antes deixando-se, no final do filme, permeabilizar pela tendência dominante, correspondendo exactamente àquilo que, no início do filme, se adivinhava tão relutante em assumir; por isso, prefere renunciar à hipótese de lograr do seu sucesso e das suas capacidades, em termos pessoais e laborais, no sentido de regressar à família e construir o seu projecto de vida familiar. Nesta medida, em Mulan, independentemente de se centrar numa protagonista com claros valores feministas, prevalecem os valores tradicionais pela ausência de verdadeiros valores transformadores: tanto no que se refere à sociedade em que se integra a protagonista (nada na aldeia de Mulan muda verdadeiramente depois de sabido o seu percurso exemplar); como no que se refere à própria protagonista (que acaba o filme a corresponder exactamente ao cânone, alterando o seu percurso nesse sentido, (quase) transmitindo a ideia de que o que a Mulan conseguiu, não o fez por si mesma, mas para alcançar a validação da sociedade – expressa na música Reflection). O que, à partida, se adivinhava como um filme centrado na luta de uma personagem feminina pela sua individualidade – em virtude do determinismo da sociedade, com as suas expectativas e os seus modelos –, acaba por se traduzir numa história de cedência e privação em concordância com uma necessidade inelutável de integração.


O facto de que a história de Mulan se passa no continente Asiático - cultural e geograficamente afastado do paradigma do mundo ocidental -, há quase duas dezenas de séculos atrás, pode, ainda, gerar interpretações ainda mais debilitantes à eficácia das potenciais mensagens deste filme, ao poder afirmar-se uma hipotética desresponsabilização da sociedade ocidental relativamente a problemas/representações que, sendo, neste filme, associadas ao continente asiático, são, no entanto, universalmente verificadas e com consequências igualmente nefastas – isto é, não efectivando, à partida, juízos de intencionalidade dos autores do filme (porque nenhum dado concreto pode ser apresentado para validar essa assunção), a contextualização geográfico-temporal da narrativa pode incitar a possíveis interpretações e apreensão de mensagens subtextuais no sentido de deslocalizar um problema tão contemporâneo como é o da tipificação de papéis de género, secundarizando-o como um problema (exclusivamente) de um passado longínquo, da China do séc. IV/V. Nesta medida, abordam-se as contingências de uma realidade que, em Mulan, é apresentada de forma intrinsecamente relacionada com um determinado contexto e um tempo específico, propiciando, nesta medida, o relegar-se do problema da desigualdade entre géneros a uma questão exclusivamente cultural – descentralizando uma tendência que é mundial, ao focá-la na história de um país/continente específico, atenuando a gravidade da questão porque não a assume como um problema tão verdadeiro na Ásia como em qualquer outra das áreas geográficas.

Com efeito, aliando estes factores aos já referidos relativamente à hiperbolização dos estereótipos numa perspectiva dubiamente crítica, se no anterior trabalho se afirmava (e aqui se relembra) a ausência de questionamento em torno dos estereótipos como principal catalisador da sua perpetuação, evidencia-se e amplifica-se este problema pelo facto de que este filme em análise se categoriza enquanto filme de animação - que, nessa condição, orientando-se essencialmente para um público constituído, maioritariamente, por crianças e jovens, se imbui de um carácter de barómetro de comportamentos a pessoas, porque em fase de formação de personalidade e construção de redes de valores, mais facilmente impressionáveis, influenciáveis e moldáveis. Nesta medida, assumindo como verdadeira a asserção de que, enquanto filme de animação, corresponde às características de um género (fílmico) cujas mensagens são alvo de ampliação para salvaguardar a clareza do seu conteúdo e/ou por motivos exclusivamente motivados pela necessidade de comicidade, pode perceber-se a ausência de relativismos em Mulan – todos os papéis sociais, neste filme, são categóricos e, na sua maioria, estanques – como uma opção específica do meio, não necessariamente vinculada a potenciais conteúdo de hipotéticas mensagens - o que, de alguma forma, pode relegar possíveis críticas de que a confrontação tão antitética entre homem e mulher seja vista como algo de intencionalmente negativo, porque conformista, enquanto circunstâncias da animação (como género) e do público a que se destina.

Nessa medida, ainda que Mulan não seja indubitavelmente inconformista, não pode, no entanto, negar-se que, para além de representar uma renovadora alternativa ao paradigma da personagem feminina Disney, levanta algumas questões extrapoláveis para os dias de hoje: ao constituir a história em torno de uma mulher que prova o seu valor num mundo patriarcal, alcançando o seu respeito vestida como um homem, serve o propósito de não dar espaço para redução das provas que completou; isto é, num contexto em que qualquer mulher que ousava falar como igual para um homem era admoestada no sentido de medir bem as suas palavras e falar com reverência, Mulan só poderia provar o seu valor arranjando uma forma de fazer com que o género não fosse um critério de desvalorização individual. Nessa medida, analogias podem ser estabelecidas relativamente ao que presenciamos, nos nossos dias, relativamente às mutações da participação feminina nos inúmeros âmbitos da vida social: não só quando se verifica a necessidade das mulheres, em contextos laborais, fazerem-se aproximar, pela roupa, ao paradigma masculino (enquanto aspecto de credibilidade – assim como o fez Mulan), mas também, por exemplo, quando se discute a controvérsia gerada pela lei da paridade na assembleia, em que é assegurada a determinação de cotas mínimas de participação feminina neste órgão legislativo, afirmando-se, neste contexto de discussão, essa necessidade como um mote para a desvalorização individual e colectiva (sendo comum pensar-se a presença das mulheres na assembleia não se motiva pelo seu valor pessoal, mas por uma inferioridade tão inerente, que precisa de ser salvaguardada, não por critérios de qualificação, mas por regras).

Estes e outros casos de descriminação imanente – processo em curso de atenuação a passos demasiado reduzidos – deixam antever uma questão de verificação e perpetuação universais, porque relegada, constante e sucessivamente, nos dias de hoje, independentemente do contexto geográfico, ao estatuto de falsa realidade e um falso problema: a mulher, enquanto indivíduo, está longe de ser tomada a sério, e as tentativas de real paridade são revestidas das mesmas características, extrapolando-se a noção de excepção da animação em análise - com uma Mulan que é única, numa sociedade de mulheres perfeitamente dispostas a agirem de acordo com a tradição e o cânone –, dos demais filmes e das séries de TV (onde as protagonistas femininas são francamente inferiores às masculinas em termos de número e de receitas que desencadeiam, salvaguardando-se raros mas felizes exemplos – de que Kill Bill é um modelo expressivo) para a vida real – em que a excepção de um indivíduo que consegue ser bem sucedido num contexto dominante cumpre o adágio popular ao configurar-se como uma triste confirmação de uma regra que nega a igualdade de circunstâncias de todos, para todos.

Francisco Rodrigues
Henrique Sousa
Júlia Gradim
Renata Ramos
Tiago Cruz

UCP.SI

quinta-feira, 26 de março de 2009

Conceito de Masculinidade.

Escrito em 1997, por Annie Proulx, Brokeback Mountain é um conto tornado conhecido pelo cinema quase uma década após a sua data de publicação, numa longa-metragem, realizada em 2005 pelo reconhecido realizador Ang Lee e interpretado por um elenco de quatro actores que desfrutam de igual popularidade no panorama do cinema internacional. Em virtude da visibilidade da produção potenciada por todos estes factores, a tradução fílmica do livro trouxe para o âmbito do debate público um tema de que o livro partilha mas não conseguiu impor: a homossexualidade apresentada enquanto relação entre pessoas do mesmo género (re)vista sob uma óptica normal e normalizada. Na mesma medida que o livro a causou – numa escala evidentemente divergente –, o lançamento do filme foi alvo de grande controvérsia, em virtude do seu conteúdo – a normalização da homossexualidade, pela potenciação dos aspectos que a aproximam à heterossexualidade, sem que haja redução ou desvirtuação da sua problemática –, mas, igualmente, pela forma – em virtude do facto de que explora, através das suas personagens (instrumentos fulcrais dessa normalização) uma das mais recorrentes figuras-tipo do imaginário americano enquanto paradigmas da masculinidade: os cowboys, do cinema, da BD e dos anúncios da malboro, projectos de futuro de qualquer rapaz que crescia (cresce) bombardeado por estas parâmetros de como (querer) ser e agir. Estas representações – nunca exclusivas do público americano, antes difundidas e embutidas no imaginário de todo o mundo – são amplamente utilizadas por Annie Proulx no momento de criação da história de Brokeback Mountain, recorrendo a estes (e outros) estereótipos numa perspectiva subversiva, fazendo expandir o espectro de discussão para abarcar igualmente as questões de género – sendo um dos aspectos de mais interessante análise a forma como a autora desvirtua a imagem do homem homossexual com características femininas, recorrendo, explorando e reiterando estereótipos de masculinidade (recorrentes, nessa condição de estereótipos, em inúmeras personagens masculinas de produções artísticas de diversos domínios em que, em todas estas, a questão da orientação sexual toma um papel secundário). Com efeito, igualmente na sua condição de estereótipos, a sua integração na cultura dominante – social e artística, porque a segunda replica a primeira – é imanente, gradual e inquestionada, e, nessa medida, introduzem-se na mesma como meias-verdades que, no caso de Brokeback Mountain, só foram postas em causa porque exploradas numa óptica divergente à comummente aceite: sendo verdade que, em inúmeros exemplos de filmografia e literatura mundial, se transmitem correspondências entre profissões tipicamente masculinas e outras tipicamente femininas (perpetuando, nessa medida, o estereótipo de que homens e mulheres têm papeis essencialmente divergentes na sociedade), tornando-se, assim, evidente que a controvérsia que a profissão dos cowboys de BBM gerou se relaciona exclusivamente com a corrupção do conceito de masculinidade que representa – porque, segundo o pensamento social dominante, um homem pode (deve) ser cowboy, mas não pode (ou deve) amar outro homem –, então revela-se um novo problema, relacionado com o não questionamento que a instauração de estereótipos de género implica. Nesta medida, sendo verdadeiro, como anteriormente referido, que o objectivo do conto (e do filme) se relaciona com a desmistificação da homossexualidade pela sua universalização, e nessa medida, fá-lo ao incutir nos seus leitores (o público) o questionamento acerca dos pré-conceitos que são normalmente associados à condição do homem másculo como aquele que é indubitavelmente heterossexual, a enfatização do facto de que os estereótipos de masculinidade só não são aceites porque associados a uma orientação sexual divergente, então denota-se o facto de que são comummente assumidos aqueles pré-conceitos – os estereótipos – como os modelos de normalidade, de padrão.
Nesta medida, embora o conto/filme BBM o transmita com um objectivo totalmente distinto – anteriormente abordado e não sendo o objecto desta análise –, é notória a exploração de diversos outros estereótipos de masculinidade (mais ou menos ofensivos), nomeadamente:

a) a rudeza – sendo particularmente evidente em momentos do livro - suprimidas no filme – em que Annie Proulx descreve comportamentos de higiene de Ennis, negando, por um lado, o naturalismo geralmente associado a uma história de amor – uma emoção geralmente representado de forma imaculada neste tipo de narrativas –, ou o repúdio pela sujidade (ou preocupação excessiva com o físico) geralmente associado à imagem do homem homossexual feminino;

b) a agressividade - particularmente evidente na personagem de Ennis del Mar que representa uma característica geralmente associada ao sexo masculino no que se refere à dificuldade de gestão – e, principalmente, verbalização – dos de sentimentos. Ennis é, nessa medida, uma personagem que fala pouco para o tanto que sente, e a violência trata-se, por isso, de uma resposta recorrente a quaisquer acontecimentos com os quais não consegue/sabe lidar, traduzido, no conto/filme: numa perspectiva de demonstração de afectividade – o companheirismo entre Jack e Ennis, numa fase inicial, de clara evolução do seu relacionamento, é demonstrado por agressões provocatórias (vistas como um divertimento) –; ou sob a óptica de confrontação (quase) territorial – incorrendo em acções violentas só para demonstrar que, de alguma forma, as pode efectivar, como, por exemplo, quando canaliza a sua revolta/frustração numa rixa de rua, injustificada, depois de ter discutido com a esposa. Nesta perspectiva, confirma-se, neste conto, a ideia do macho-alfa, que sente a demonstração de sentimentos como algo que, de alguma forma, o reduz quando em relação com outros indivíduos (particularmente, do sexo masculino), sem que, no entanto, possa restringir o facto de sentir intensamente, mas antes traduzindo esses sentimentos fisicamente – também presentes, em Ennis, no momento em que, afastado pela primeira vez de Jack, vomita numa esquina, escondido, gritando para um rapaz que passa e que o vê naquela condição; no conto, só mais tarde partilha com Jack a sua reacção ao seu afastamento, num raro momento de confidência por parte do primeiro.

c) a sobre-sexualização – sendo, no entanto, um dos aspectos de mais discutível verificação neste conto/filme (uma vez que, principalmente o segundo, conforme já explanado, é bem sucedido na romantização normalizante da relação de Ennis e Jack), trata-se de uma representação comum nas demais produções fílmicas do cinema comercial americano e dos média em geral – particularmente no que se refere às tão perigosamente (re)vistas teen comedies como American Pie ou Not Another Teen Movie, em que rapazes e raparigas são representados, respectivamente, como viciados em sexo e como objectos sexuais. No entanto, com graus de divergente ostentação desta vertente excessivamente sexual, estes dois papéis, associados a homens e a mulheres, são representações comuns perpetuadas pelos referidos meios de comunicação, assumindo-se como uma divergência de género a importância que homems atribuem ao âmbito físico das relações entre pares sexualmente activos. Neste conto/filme, com efeito, será discutível a verificação deste estereótipo – tão simplista do que é a relação entre pessoas, homens ou mulheres –, embora haja elementos que indicam para a sua representação: o início da relação sexual de Ennis e Jack é apresentado como um impulso incontrolável, (quase) como uma necessidade de quebrar o período de abstinência (potenciada pela natureza da profissão, que requeria o seu afastamento das famílias durante longos períodos de tempo), que só mais tarde é desenvolvido, nas obras, sob a óptica de romance que se estende da vertente física para a afectiva. Esta vertente é, ainda, enfatizada, pela forma como o próprio Ennis verbaliza a sua incompreensão face àquilo que sente relativamente à sua relação física com Jack: Ennis é o único dos dois homens que nunca assume/verbaliza (para si ou para os outros) sentir atracção por outros homens, antes descrevendo a sua relação com Jack como um caso único e fora do que é, para si, normal – assunção esta que se relaciona, maioritariamente, com questões culturais específicas da personagem (em virtude da sua educação e o seu contexto, a homossexualidade não é vista por Ennis como algo de natural), mas pode imbuir o facto de que a personagem é pela primeira vez confrontada com a sua atracção por um homem (e não homens) de um novo significado, por se tratar da primeira vez em que é confrontado com um longo período de abstinência, já que o Verão em que conheceu Jack, marcou também o seu primeiro trabalho como pastor. Como anteriormente referido, a necessidade de uma relação física entre Ennis e Jack, embora seja desenvolvida, ao longo da história, enquanto uma dependência de cariz essencialmente afectivo, mantém-se sempre no decorrer da mesma: Ennis mantém uma relação física que, ainda que esporádica, revela essa necessidade, enquanto que Jack a evidencia de forma mais frequente, recorrendo, por isso, à prostituição de modo a corresponder às carências de uma relação física homossexual.

d) Desresponsabilização e desprezo pela figura feminina enquanto elementos que justificam o adultério – sendo verdadeira a assunção de que, culturalmente, adultério era um tipo de comportamento geralmente associado ao homem típico de um passado (mais ou menos) recente, também o é que continua, embora num grau muito menos acentuado, em pleno século XXI, a ser mais esperado (e menos condenado) que um homem apresente comportamentos infiéis do que uma mulher nas mesmas condições (sendo que à segunda se associa igualmente muito mais a capacidade de perdoar). Nesta medida, são muitos os estímulos mediáticos, sociais ou artísticos, que perpetuam permissivamente esta perspectiva condescendente do homem enquanto um ser incapaz de ser relacionalmente responsável – e da mulher como um ser, por contraposição, passivo, ou desviante quando incorre nos mesmos comportamentos comummente desculpados enquanto conduta masculina –, sem se denotar a intenção de quebrar com um estereótipo cujo fundo de verdade se extinguiu, em perspectivas tão categóricas, há décadas atrás. Ennis é, no entanto, um homem deste passado: um pai de família e o típico homem da casa, incapaz de assumir responsavelmente a sua relação com outra pessoa (que, apesar de assente em pressupostos verdadeiros, de um sentimento que o é igualmente, não lhe destitui do seu carácter adúltero) e, em conformidade, de abandonar a mulher e as filhas – em virtude, igualmente, das repercussões desse acto, mas essencialmente por ter um sentimento de dever e de necessidade de correspondência ao que a sociedade espera de si –, ou mesmo quebrar com o seu comportamento de infidelidade. Alma é, com efeito, representada igualmente como um ser passivo, que, no único momento em que nega esta tendência, é fisicamente admoestada pelo marido – configurando-se como mais um exemplo da reacção-padrão de Ennis quando confrontado com algum estímulo que sente como ameaçador aos mais diversos níveis (conforme explicado anteriormente).

Relativamente ao último ponto, concernente à relação familiar, Ennis e Jack evidenciam duas perspectivas de uma mesma vivência de forma claramente exemplificativa do que tem vindo a ser abordado neste trabalho (mesmo em pontos não directamente relacionados), enquanto representações culturais – motivadas, na mesma medida e algo ciclicamente, igualmente pela cultura e o contexto sociais –, imiscuídas no domínio do subtexto e, nessa medida, porque não questionadas, se foram mantendo como verdadeiras ao longo dos tempos: em Jack, denota-se a verificação da confrontação territorial, a ideia da família enquanto objecto do ritual masculino da afirmação de uma identidade dominante – presente na discussão entre este e o pai de Lureen (esposa de Jack), à mesa, em que Jack impõe a sua preponderância do seu papel decisório na educação das filhas –; em Ennis, denota-se a clara dificuldade em lidar com o seu papel na família (enquanto referente à sociedade que a integra), porque inseguro de ser capaz de corresponder ao que essa tarefa lhe exige - insegurança que motiva a agressividade da personagem e a procura de manter uma situação familiar instável a todo o custo (por pressão auto-imposta, bem como enquanto resposta disfuncionalmente conformista a um pressuposto social), preterindo a verdade em relação à simples hipótese de negar essa conformidade social (e, nessa medida, agir como indivíduo racionalmente autónomo). Com efeito, sendo verdadeiro que, por um lado, Brokeback Mountain corresponde a um objectivo – o de subverter a relação do leitor/espectador com os estereótipos associados à homossexualidade a partir do seu questionamento a partir de motivos acentuadamente masculinos (e sobre-masculinizados) – e a um tempo específicos – em que a preponderância dos estereótipos desencadeava a constante categorização de papéis, e a formulação, por consequência, de verdadeiras personagens-tipo –, por outro lado, a perpetuação destes pressupostos por parte das inúmeras obras (principalmente fílmicas) da contemporaneidade, não integra, na maioria dos exemplos, semelhantes justificações e intentos.
Pelo contrário, existem, no entanto, obras bem sucedidas no que se refere à exploração de estereótipos que, por contraste, ajudam a subverter a assunção de unidimensionalidade que este tipo de perigosa categorização pode desencadear. Nesta medida, filmes como “Cinderella Man” – do mesmo ano, 2005, por Ron Howard – ou “The Wrestler” – 2008, de Darren Aronosfsky –, exploram representações tipicamente masculinas, ao mesmo tempo que as enquadram, essencialmente, como aspectos integrantes da sua personalidade, mas não únicos, na sua condição de meras parcelas; isto é, são características frontalmente assumidas, mas tornadas secundárias pela sua irrelevância face ao que aqueles homens são, enquanto pessoas, e não como passivos entes de um grupo que lhes determina formas de ser e de agir, individual e colectivamente. Com efeito, embora partilhem de uma premissa narrativa parcialmente semelhante, ambas as personagens assumem caminhos divergentes – materializando a pluralidade da condição de ser humano, invocada anteriormente.
Nesta medida, “Cinderella Man” e “The Wrestler” partilham apenas o facto de apresentarem duas personagens (respectivamente, J. Braddock e Randy), cuja profissão é tipicamente masculina – são profissionais de desportos de luta, respectivamente, Boxe e Luta livre –, e ambos se configuram (e estão rodeados de) signos de virilidade. J. Braddock (“Cinderella Man”) é, com efeito, um boxer americano que, após ter terminado a sua carreira, se vê obrigado a voltar a lutar quando ele e a família (a esposa e três filhos) são confrontados pela instabilidade económica da Grande Depressão dos anos 30. Randy é um profissional de Luta livre e um homem de família, que se deixa corromper pelas circunstâncias do seu meio profissional (a fama, as drogas, álcool e o adultério) , a ponto de, no momento em que a narrativa nos apresenta a personagem, este se encontrar sozinho a viver numa roulotte, alienado pela filha e esposa, sentindo-se reduzido enquanto wrestler (em final de carreira forçado pela sua saúde) e enquanto homem (que falhou em todas as decisões e dimensões do seu projecto de vida). As diferenças entre personagens/narrativas são, nesta medida, evidentes:

a) J. Braddock é um homem representativo da nobreza de carácter, do espírito de sacrifício e da confirmação de valores humanistas (algo dicotomicamente, tornando secundário o facto de ser um homem cuja profissão deriva da agressividade, pela contraposição com uma postura moderada e pacifista no seu quotidiano). Nesta medida, embora seja discutível a desejabilidade de exaltar o facto deste ter sacrificado o seu corpo e dignidade pela família como o aspecto mais representativo da sensibilidade de Braddock – por se incorrer no risco de recair sobre o estereótipo contrário, anteriormente referido, do homem enquanto elemento mais preponderante/dominante no contexto familiar –, trata-se, mais uma vez, de um aspecto de contextualização epocal, sendo inegável que, em virtude da própria condição da mulher na sociedade de então, o esperado seria que fosse o homem a responder/agir perante uma crise. Acresce ainda a este aspecto, o facto de que o filme explora, igualmente, estereótipos masculinos no sentido de ilustrar esse mesmo ambiente social, pela existência de personagens masculinas que servem de contraponto ao protagonista (personagens agressivas, imoderadas (até provocatórias) do ponto de vista sexual, individualistas, etc.). No entanto, J. Braddock apresenta-se como a alternativa a este ponto de vista simplista do sexo masculino – expressivamente sugerido no facto de ele ter decidido ir pedir dinheiro aos antigos colegas revela um altruismo que vai contra a noção de masculinidade que era considerada o paradigma do homem da época.

b) Em “The Wrestler”, a abordagem é claramente divergente e algo dicotómica, efectivando-se a exploração dos diversos estereótipos/características associadas à masculina no sentido em que estas tomam parte da especificidade da personagem, conseguindo, ao ponderar o seu carácter de fenómenos de índole individual, desproblematizar, desmistificando: 1) o carácter excessivamente dramático (e condenável) associados à ocorrência de determinados comportamentos tipicamente masculinos – uma vez que o facto de Randy ser um homem viril e forte, em nada diminui a sua condição de bom companheiro e profissional (assente na sua relação com os outros lutadores, em que não é evidenciado nenhum carácter de real agressividade/competição, e um sentimento de entre-ajuda e admiração mútua acentuados) ou bom ser humano (evidenciada pela sua relação com as crianças, a sua vontade de retomar relações com a filha, e mesmo o sentido de proteccionismo relativamente à personagem de Cassidy – nunca objecto de desrespeito ou julgamento); 2) o carácter de não-opção, muitas vezes, associado à verificação de alguns estereótipos negativos – apresentando a confirmação dos mesmos (nomeadamente, a sobre-sexualização, a bebida e o ego, impeditivos à efectivação da única opção que Randy tem de total redenção no que se refere à sua relação com a filha), assumindo-os frontalmente e de forma não desresponsabilizante, apresentando-os como características da personagem. Não desculpabilizando os erros de Randy, o filme não incorre na tentação de os generalizar enquanto constructos de ordem exclusivamente social – não tornando passível a generalização, optando por apresentá-los como partes do desenvolvimento individual daquela personagem em específico. Com efeito, enquanto parte do desenvolvimento, não deixa de ser isso mesmo: uma pequena parcela de um ser que, porque multidimensional e humano, é falível, não por ser homem, mas por ser pessoa.

Porque os média – os filmes, os livros, as histórias que ouvimos e contamos – tendem à categorização – é mais fácil agir/julgar mediante pré-conceitos do que assumir/respeitar a individualidade de cada um –, é que se torna tão fulcral recordar que a base da nossa comunicação deve partir do reconhecimento de que a nossa condição de pessoas é indissociável à verificação de pluralidade, numa rede de múltiplas especificidades. Questões como contextualização epocal ou aglutinante generalização colectiva – que leva a que determinados comportamentos sejam perpetuados por não questionamento e por tipificação das relações sociais entre pessoas –, tornam-se conceitos chave para compreender, por um lado, uma diferenciação necessária entre um passado e um presente desejavelmente diferentes no que se refere à normatização de papéis sociais vividos de forma estanque e estereotipada; e, por outro lado, algo paradoxalmente, a necessidade de não desresponsabilizarmos estes comportamentos como falsos problemas porque falsas realidades.
Nessa medida, nunca os nossos comportamentos/a nossa individualidade podem estar subordinados a esses códigos de suposta facilitação da comunicação: os estereótipos multiplicam-se por essa passividade face à mudança, e à perigosa apatia no que se refere aos estímulos com que somos confrontados que, directa ou subrepticiamente, no que diz respeito a este tema em específico, influenciam muitos rapazes desta geração no sentido de “agirem/serem” de determinada maneira hoje, porque este se seguiu a um ontem em que os homens agiram/foram da mesma maneira, e foi sempre aceite que assim fosse. No entanto, os tempos mudam e, da mesma forma que os meios de subversão se multiplicam – e se reproduzem as possibilidades de se transmitirem mensagens desconstrutivas –, também se ampliam os meios de conhecer e desvendar estes instrumentos de subversão e perpetuação de ignorância e desigualdade. E, nessa medida, se, há décadas atrás, era categoricamente verdadeira a recorrência dos estereótipos analisados ao longo do presente trabalho, sê-lo-á igualmente que se tratam de comportamentos tornados relativos nas novas gerações de pessoas – suficientemente desenvolvidas para que a maioria das raparigas não sofra passivamente muito do que as mulheres (mães, avós) do passado sofreram; nem os rapazes queiram ser os clichés de insensibilidade a que foram sendo associados.

Francisco Rodrigues
Henrique Sousa
Júlia Gradim
Renata Ramos
Tiago Cruz

UCP.SI